“Na escola, a ruptura de vínculos é, muitas vezes, dada pela fragilidade da escuta ao aluno, pela desconsideração de suas expectativas, pela pouca clareza sobre suas condições de aprender e de se integrar no grupo; enfim, pelo abandono pedagógico. O aluno que não se vê em condições de acompanhar as demandas da escola e de ser aceito pela comunidade estudantil está, antecipadamente, condenado aos problemas de aprendizagem e ao risco de marginalização social.”
Esse é um trecho do livro Alfabetização – O Quê, Por Quê e Como, da professora Silvia Gasparian Colello, da Faculdade de Educação da USP. No livro, a autora considera que a alfabetização não pode ser vista meramente como a transmissão mecânica da habilidade de ler e escrever. Antes, deve estar relacionada com a mais ampla formação do aluno e sua inserção na sociedade em que vive. Para isso, é necessário recorrer às concepções de língua, de ensino e de aprendizagem que, trazidas à luz por pesquisadores de várias áreas do conhecimento – como a linguística, a sociologia e a psicologia -, contribuem para a prática pedagógica.
De acordo com Silvia, quando a língua é tomada como um código fixo ou um mecanismo de expressão – a mera transposição de uma ideia para o papel -, a escrita passa a ser concebida como um objeto monológico e inflexível, desvinculado dos propósitos comunicativos e do contexto da interlocução. “Na autonomia do texto que, uma vez fixado em um suporte (tela ou papel), supostamente se explica por si só, há um inevitável processo de exclusão do leitor, como se de fato ele não fizesse parte da situação comunicativa ou da construção de sentidos”, escreve a professora. “As consequências dessa condição aparecem com frequência na forma de descomprometimento do aluno, dificuldades de aprendizagem, prejuízo dos hábitos de leitura, rejeição ao status de leitor e escritor (como é o caso do ‘aluno copista’), analfabetismo de resistência, fracasso escolar e práticas linguísticas limitadas que sustentam o analfabetismo funcional.”
Uma prática bem diferente dessa concepção se dá quando a escrita é vista como “manifestação discursiva”, que acontece numa “situação de encontro e de interação”, como sugerido pelo pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). “Nesse caso, a língua se constitui na relação entre pessoas que, pela negociação de sentidos, participam ativamente da construção linguística, entendendo-a como espaço de efetiva comunicação”, explica Silvia. “Admitir a natureza dialógica da escrita põe em evidência sua dimensão sociocultural, isto é, o fato de que ler e escrever só fazem sentido em um universo contextualizado, em função de determinadas condições de produção e de interpretação.” Para a professora, as práticas de escrita são legitimadas por “propósitos sociais” e pelos “modos do dizer historicamente situados”. Daí que, mais do que aprender o funcionamento do sistema da escrita, é necessário “aprofundar a inserção do sujeito no contexto das práticas letradas do seu mundo”.
No que se refere à dimensão cognitiva da alfabetização, Silvia Colello destaca as pesquisas do suíço Jean Piaget (1896-1980). Elas revelam o comportamento ativo das crianças, que desejam compreender o mundo e para isso buscam informações, criam hipóteses, antecipam resultados, testam concepções, enfrentam conflitos e constroem conhecimento. “No caso da escrita, trata-se de um processo que, de modo singular, coloca o aluno diante de diferentes frentes de construção cognitiva: usos da escrita, relações entre imagem e texto, oralidade e escrita, dialetos e escrita, gêneros textuais e suportes da escrita”, exemplifica a professora.
Silvia acrescenta que compreender o processo cognitivo impõe a necessidade de se rever as práticas de ensino, nem sempre preparadas para lidar com a sua complexidade. “Por isso, cumpre criar um espaço cognitivamente provocativo, socialmente contextualizado e pessoalmente sedutor, um espaço capaz de conciliar propósitos comunicativos (usos sociais da escrita) e didáticos (saberes sobre a escrita).”
Alfabetizar com vistas à plena interação do educando com o mundo – e não ao mero domínio de um código – exige uma escola com características específicas, que Silvia elenca: um ensino que possa trazer o mundo para a sala de aula e, ao mesmo tempo, tornar a escola instância significativa no contexto de vida, professores capazes de lidar com diferentes caminhos de produção e interpretação, dialogando com seus alunos e ampliando os mecanismos de interação e comunicação, e atividades linguísticas baseadas na ampliação de competências do ouvir e falar, ler e escrever. “Nesse sentido, o desafio dos educadores na sociedade contemporânea, mais do que alfabetizar, é investir na constituição do sujeito leitor e escritor, incorporando na sua prática o significado político da formação humana.”
Com 216 páginas, o livro da professora Silvia traz uma novidade: no apêndice, através de QR codes, o leitor tem acesso a materiais complementares – textos, entrevistas, videoaulas e podcasts, por exemplo – relacionados aos temas abordados em cada capítulo.
Alfabetização – O Quê, Por Quê e Como, de Silvia Gasparian Colello, Editora Summus, 216 páginas, R$ 71,60 (e-book: R$ 45,50).
Foto: paraiba.pb.gov.br