A 600 quilômetros de Teresina, em Guaribas, Piauí, a professora de Biologia Amanda de Sousa, de 30 anos, usa a Inteligência Artificial (IA) para fazer com que estudantes do ensino médio aprendam mais sobre o sertão.
Antes da etapa no computador, os alunos iniciam as atividades desconectados, em cartolina, seguindo instruções para chegar às respostas corretas, na mesma lógica do algoritmo. Em uma aula, tinham de encontrar animais da caatinga a partir do reconhecimento de características comuns.
Não são apenas os alunos de Amanda. Cerca de 120 mil estudantes do 9º ano do ensino fundamental ao 3º do médio da rede estadual do Piauí têm aula de Inteligência Artificial na grade curricular desde o ano passado.
Eles aprendem a construir comandos e algoritmos e usam a ferramenta para identificar se uma imagem ou voz foi manipulada para criar fake news, por exemplo. Cada escola pode adaptar a aula conforme realidade e demanda locais.
“Por conta dos períodos de seca, incêndios são comuns. Costumo pedir para pesquisarem como a IA pode mitigar problemas ambientais. A aprendizagem se torna mais significativa e ainda reforçamos o pertencimento”, afirma.
Os docentes de IA já eram da rede e, em sua maioria, ministravam disciplinas de ciências exatas, informática e programação. Para a nova missão, passaram por formação específica formulada com apoio de um grupo especializado.
Amanda se habilitou a lecionar Inteligência Artificial porque voltava de licença-maternidade e queria aumentar a carga horária, para ter renda extra. No fim, se apaixonou pela tecnologia: pretende fazer outro curso superior na área de ciências da computação.
Iniciativas com Inteligência Artificial são mais presentes na rede particular
A cultura digital é uma das competências gerais previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que devem ser desenvolvidas nos alunos, embora disciplinas e iniciativas que envolvem IA ainda sejam mais pontuais e comuns entre escolas particulares.
Na Beacon School, escola internacional em São Paulo, a IA é introduzida de forma progressiva no currículo: começa nos anos iniciais do fundamental com conceitos básicos, e segue empregada de modo transversal ao longo dos ciclos. Nas aulas de Artes, a IA generativa é utilizada para criar imagens; em História, ajuda a embasar a análise de fontes e informações. Já em Matemática, a IA é aplicada na criação de prompts, que são comandos de programação.
“Nas aulas de Português, o recurso é empregado para produção de textos e identificar problemas como falta de profundidade, repetições e argumentos circulares, desenvolvendo olhar crítico sobre o uso da tecnologia na escrita. Promovemos uma abordagem investigativa e interdisciplinar, incentivando o aluno a questionar, analisar e aplicar a IA de forma consciente”, afirma Eduarda Menezes, coordenadora de EdTech da Beacon School.
Para Doug Alvoroçado, professor e consultor em transformação digital, é importante que a escola assuma a responsabilidade de levar temas como o da IA para a sala de aula. “Ela tem um papel de ser polo irradiador de cultura do seu tempo presente, por isso tem de estar atualizada com o que acontece”, afirma.
Automação e conscientização
No Colégio Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, a IA é uma das disciplinas do curso técnico de Automação Industrial. O professor Lucas Chao explica que algoritmos ajudam a criar soluções inteligentes em projetos como o braço robótico.
“Utilizamos a IA para o reconhecimento de voz e movimentação do braço que pode ser um instrumento para acessibilidade. A IA ajuda a otimizar a automação industrial, mas nas aulas abordamos todo o processo ético de como utilizá-la e seus fundamentos”, explica Chao.
Para o docente, o uso do recurso dentro da escola se torna problemático quando substitui uma atividade que colabora com o desenvolvimento de uma habilidade técnica ou socioemocional, levando o estudante, sob pressão por resultados imediatos, a priorizar o desempenho ou as notas em vez da aprendizagem.
“Dessa forma, o estudante condena a capacidade de um dia se tornar melhor do que a máquina, e o potencial humano é infinitamente maior, mas exige uma jornada, um caminho de aperfeiçoamento próprio.”
Criando ‘solucionadores de problemas’ através da Inteligência Artificial
Na FIAP School, os alunos do 7º ano foram desafiados a construir um veículo espacial que funcionasse com controle remoto. Antes de partir para o protótipo, fizeram um processo de brainstorm, em que puderam discutir e refinar ideias. O passo seguinte foi acionar o ChatGPT para criar a imagem do projeto em 3D, que guiou a construção feita com equipamentos como impressora 3D e cortadora a laser.
“Demos todo o contexto, a engenharia de prompt e como o ChatGPT deveria ser questionado para produzir as imagens que iriam inspirar a construção dos alunos. Eles utilizaram a IA para ter ideações e solucionar problemas”, conta Alexandre Russi, coordenador de projetos da FIAP School.
A IA está presente em duas disciplinas de tecnologia da FIAP School oferecidas desde o 1º ano do fundamental com intuito de produzir projetos que resolvam problemas da sociedade. Russi reforça que, assim como ocorreu com o veículo espacial, o recurso é utilizado para o desenvolvimento de ideias, códigos e desenhos e os conteúdos são adaptados de acordo com a idade dos alunos.
Nos anos iniciais do fundamental as atividades são mais lúdicas, e nas séries finais, já são introduzidos conceitos mais técnicos de funcionamento da IA, engenharia de prompt e lógica. No ensino médio, os conteúdos passam por machine learning, redes neurais artificiais e outras tecnologias atuais. Em comum, em todos os ciclos, há a preocupação com o desenvolvimento do raciocínio lógico dos estudantes, de acordo com Russi.
“Temos de formar um ser pensante, no futuro precisaremos de pessoas na sociedade que façam as perguntas corretas, de forma lógica, e que resolvam problemas. Precisamos de solucionadores de problemas, não só de pessoas que reproduzem algum processo”, finaliza.
Secretário de Educação do Piauí, Washington Bandeira reforça que as questões éticas também devem ser abordadas no conteúdo de IA. “É mais robusto do que uma disciplina de pensamento computacional. Temos a parte introdutória, aprendizado de máquina, educação midiática, e o que é o dado fidedigno, mostrando que a base pode ter riscos em relação à precisão. Tudo isso está no currículo.”
Reproduzir modelo tradicional e reforçar vieses são preocupações
Leo Burd, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e presidente do conselho da Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa (RBAC) reforça que a IA deva ser um instrumento para ajudar a desenvolver e potencializar habilidades humanas como criatividade, colaboração, empatia e senso crítico.
Por outro lado, ele teme que uma ferramenta “moderna” seja utilizada para reforçar um modelo educacional ultrapassado, em que o professor transmite conhecimento e o aluno fique no papel de receptor. Para Burd, é fundamental que ela seja empregada para garantir a transformação de um modelo de educação em que o professor se torne facilitador de experiências de aprendizagem na qual o aluno seja desafiado a expressar ideias, dúvidas e criar projetos conectados com a sua realidade.
“Buscamos uma educação mais alinhada com o nosso tempo que incentiva a autonomia do estudante. Assim, esperamos que os alunos desenvolvam projetos significativos para eles, e a IA passa a ser utilizada como atendente no desenvolvimento deles, uma ferramenta que vai auxiliá-lo nesse processo”, diz Burd.
A base de dados em que é construída a IA para direcionar respostas também preocupa Burd, já que ela pode reforçar vieses. “A base de dados pode pender tanto para um lado quanto para outro. Que versão da história do Brasil foi incorporada? Que visão de religião? Há dados representativos da minha comunidade, de diferentes tipos de ideologia? As ferramentas ainda não estão maduras o suficiente e há um viés questionável”, pondera.
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