Se terminar o ensino básico já é um desafio para travestis e transexuais, entrar na universidade e seguir carreira acadêmica são um sonho ainda mais distante para grande parte dessas pessoas. Ainda pequena, a presença de professores trans e coletivos de alunos LGBT+ já faz a diferença e ajuda a trazer mais diversidade, combater preconceitos e pautar novos debates nos câmpus, mas esbarra em problemas estruturais dessa população e resistência de parte dos corpos docente e discente.
PIADA
Professora de biofísica molecular desde 2007 na Universidade Federal do ABC paulista (UFABC), Ana Lígia Scott, de 53 anos, realizou o processo de transição de gênero no fim de 2016. Respeitada na comunidade acadêmica em que já atuava por mais de dez anos quando começou o processo, ela de repente se viu na função de educar muitos dos alunos e colegas que lidavam com o tema pela primeira vez. “Na época, tínhamos apenas duas estudantes transexuais que eu conhecia. Mas no corpo docente e entre os funcionários não tinha ninguém. Foi uma novidade”, lembra Ana. Enquanto o processo de transição avançava, ela se viu na obrigação de abrir o jogo com as turmas em que lecionava. “Senti a necessidade de informá-los, porque me conheciam havia muito tempo e começaram a me olhar estranho. Escrevi uma carta, colei na porta da sala e chamei os alunos para conversar no laboratório.” A reação de todos a surpreendeu.
“Eles disseram: Mas é só isso? Achamos que ia fechar o laboratório. Estamos felizes por você.” Alguns colegas do corpo docente, entretanto, foram menos gentis. “A primeira vez que usei o banheiro feminino, sofri piada transfóbica de outra professora. Outros dois colegas se recusavam a pegar o elevador comigo, como se eu tivesse uma doença contagiosa”, lembra.
À medida que as unhas ganharam cor, as roupas mudaram e a transição começou a aparecer, Ana decidiu adotar seu nome social em todos os sistemas acadêmicos, algo teoricamente possível e imediato nas repartições públicas, graças a um decreto de 2015. Foram meses de conversa, e-mails e ameaças de judicialização para que Ana pudesse usar o nome nos sistemas da Fapesp, do CNPq e do Capes, que estão diretamente atrelados à função de pesquisadora.
UFRJ
Na Universidade Federal do Rio (UFRJ), a experiência também pioneira de Daniela Balbi não chegou a passar por esses tipos de violência, mas ela acredita que ainda há um longo caminho a ser percorrido até que o meio acadêmico seja de fato acolhedor para pessoas trans. Em 2019, ela assumiu o posto de professora substituta na Escola de Comunicação. “A instituição, a universidade em geral, está mais receptiva ao debate do que era há 15 anos, quando fui aluna da graduação. Com o corpo docente e técnico-administrativo, fiz amigos que vou levar para a vida, que sempre se colocaram à disposição, desde o cotidiano da vida prática até se caso houvesse algum episódio de transfobia”, comenta. “Eles faziam questão de me auxiliar em conjunto. Foi um sonho.”
ALUNA
Ex-aluna da mesma instituição, Dani viu com prazer o crescimento e fortalecimento de coletivos estudantis que pautavam e debatiam a questão LGBT+ de forma mais atuante, o que ela encara como um reflexo dos avanços conquistados pelo movimento social nos últimos anos. “O meio acadêmico está mais preparado do que já esteve, com a universidade se apresentando assim sem medo e sem recalque. Ao mesmo tempo, a pauta não está esgotada. Temos de aumentar a oferta de professores e alunos, mas isso também passa pelo acesso ao ensino básico, porque nossa realidade é de abandono, vulnerabilidade e informalidade.”
ACESSO
Em 2018, uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) apontou que pessoas trans representavam apenas 0,1% de todas as matrículas no ensino superior público. Depois disso, uma pequena parte das universidades brasileiras tem adotado cotas especiais para essa população, que ainda não são totalmente preenchidas pela própria falta de candidatos aptos.
Em 2018, a UFABC implementou uma política de oferecer 1,6% das vagas na graduação para a população trans, mas encarou escassez de matrículas. “Isso nos informa que existe um gargalo na educação básica. A EJA precisa de fortalecimento e, enquanto essas pessoas trans não estiverem formadas, vamos pegar as poucas que conseguiram se formar”, aponta Rena Orofino, presidente da Comissão Especial para Pessoas Transgêneras, Transexuais e Travestis (CEPT) na instituição.
Ela aponta que, dois anos após a abertura dessas vagas, a UFABC já contava com 60 estudantes autodeclarados trans, um total aquém do ofertado. Ativistas e acadêmicos trans apontam que, durante a infância e adolescência, essa população passa por um sistema de “abandono compulsório” da vida escolar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
João Ker