Na cidade de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador (BA), a educadora Noêmia Verúcia vestia bebês, de 6 meses a 1 ano de idade, com becas como advogados, psicólogos e outras profissões. A cena rendeu lindas fotos que a educadora expôs em uma reunião com os pais, que receberam as imagens emocionados.
A ideia de Verúcia era mostrar aos pais que seus filhos não estavam predestinados a opções limitadas e poderiam se tornar o que quisessem. “Eu vesti os bebês de beca para mostrar aos pais que, apesar da violência e pobreza da região, eles podem ter um futuro de sucesso.”
“Como são bebes negros, na sua grande maioria, estamos projetando, não só neles, mas nas famílias, uma perspectiva de que podem ser isso tudo, sim”, conta a professora. A reação dos pais, que não sabiam da surpresa que a escola havia preparado, foi de muita emoção.
O projeto, chamado “Berçário Reluz”, do Centro Municipal de Educação Infantil Dr. Djalma Ramos, realiza diversas atividades como essa ao longo do ano. A perspectiva é mostrar aos alunos, desde cedo, elementos da cultura africana e afro-brasileira. Para isso, uma das formas principais de trabalhar o assunto com bebês tão pequenos é por meio da música.
Música e cultura afro-brasileira na educação infantil
A escola sempre trabalha com personalidades femininas negras. No ano passado, a canção Cupido Erê, da cantora baiana Larissa Luz, foi a escolhida para guiar todo o processo de ensino antirracista da escola. A escolha da música se deu pelo preconceito que Verúcia presenciava com palavras de matrizes africanas e indígenas, mesmo entre a comunidade baiana, que vive diariamente essas referências.
Dentre as diversas atividades, as educadoras cantavam a música para os alunos, que dançavam ao som de Cupido Erê. “Eles param, prestam atenção, veem as palavras”, conta a professora. “Depois, mostrei imagens da cantora, a Larissa Luz, e também dos pais e avós deles, sob uma perspectiva de afroancestralidade. Fiz móbiles com essas imagens e os coloquei no berçário. O interessante é ver a emoção deles ao encontrar os seus.”
“Na creche, os pais deixam de manhã e só vêm pegar à tarde. Então, para eles, significa os pais adentrando aquele espaço. Tem criança que chora, que abraça, que beija. São diversas emoções”, relata.
A educadora organizou um “espaço afrofuturista”, onde colocou uma mesa decorada com vários elementos étnicos da cultura africana e também elementos sensoriais com uma “ideia futurista”. Lá, também estavam as fotos dos alunos vestidos com becas.
Em outro momento, os bebês puderam degustar frutas ao som das músicas de Larissa Luz. Dessa vez, na atividade “Comida de Erê”, também com referências africanas e indígenas.
Impacto antirracista nas famílias e na equipe escolar
O objetivo de todo o projeto era não apenas ambientar as crianças a referências positivas e felizes ligadas às suas ancestralidades. Era também educar os pais e demais funcionários da escola na luta antirracista, explica a professora. “Eu não estava trabalhando só o bebê, mas também as pessoas adultas, porque os bebês não têm preconceitos, mas o adulto, que tem muito preconceito, pode ser reprodutor desses estigmas”, afirma.
Com as atividades, Verúcia relata que viu uma mudança de comportamento nos funcionários da escola. “Se eles começaram questionando as atividades, com o tempo passaram a trazer relatos percebendo o quanto eles mesmos também passaram por diversas situações (racistas) e se calaram”.
A professora foi uma das 16 premiadas (entre educadores e docentes) na 9.ª edição do Prêmio Educar com Equidade Racial e de Gênero: experiências de gestão e práticas pedagógicas antirracistas em ambiente escolar, promovido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Os vencedores, que disputaram em meio a 524 projetos, receberam R$ 7 mil, além de livros na temática de equidade racial e de gênero na educação básica e um curso virtual de formação continuada no mesmo tema.
A importância de um projeto antirracista na educação brasileira
Segundo Daniel Bento Teixeira, diretor-executivo do CEERT e membro da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), há a incidência do racismo já durante a construção da primeira infância de forma bastante impactante. “Há vários estudos que mostram a diferença de afeto entre bebês negros em relação a bebês brancos. Nas brincadeiras também, quando há a projeção de uma profissão para o futuro, a criança negra é impedida de se pensar como médica, por exemplo”, afirma.
Desde 2002, o prêmio Educar do CEERT valoriza práticas pedagógicas de professores e gestores da educação básica, “com o propósito de construção da equidade racial e de gênero, concretizando o direito ao pleno desenvolvimento escolar de crianças, adolescentes e jovens negros, brancos, indígenas e de outros grupos étnico-raciais”. A iniciativa surgiu a partir de debates promovidos pela entidade, desde 2000, em parceria com diversos atores do movimento negro e da área da educação.
O projeto nasceu antes mesmo da implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluem a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura africana, afro-brasileira e indígena em todas as etapas de ensino e em escolas de todo o País. Depois da criação das leis, a referência a ela no projeto passou a ser um dos critérios de seleção.
“Além de todo o reconhecimento para os educadores e educadoras, a criação do prêmio é uma contribuição do CEERT para a luta antirracista no Brasil. É comum ouvirmos que a saída para o Brasil é pela educação. Mas não é qualquer projeto de educação que pode se enquadrar como solução para o País. Se for uma educação que reproduz o racismo, ela não só deseduca como desumaniza a maior parte da população brasileira”, declara Teixeira.
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