Religião não é fator que mais influencia rejeição da teoria evolutiva nas escolas
Embora a religião tenha influência no processo de aceitação e, consequentemente, de compreensão da teoria da evolução por alunos do ensino médio, aspectos socioculturais mais amplos – entre eles nacionalidade, percepção social da ciência e condições socioeconômicas – são mais determinantes. A conclusão é de um estudo feito com 5,5 mil estudantes brasileiros e italianos entre 14 e 16 anos. Os resultados foram divulgados na revista PLOS ONE.
Os pesquisadores apresentaram aos participantes uma série de afirmações relacionadas à idade da Terra, a registros fósseis e à origem dos seres humanos, entre outros temas similares. Os alunos classificaram cada item como verdadeiro ou falso. Ao analisar as respostas, os pesquisadores constataram que a nacionalidade foi mais determinante do que a religião, já que italianos católicos demonstraram ter maior aceitação às teorias sobre uma ancestralidade comum e à seleção natural, por exemplo, do que brasileiros católicos. Estes demonstraram padrão de respostas similar ao de brasileiros evangélicos.
“Os resultados do nosso estudo mostram, portanto, que um contexto sociocultural mais amplo interfere na aceitação da teoria evolutiva. Sociedades conservadoras, como é o caso da brasileira, tendem a ser mais refratárias às ideias evolutivas propostas por [Charles] Darwin que integram o conteúdo curricular das escolas”, disse à Agência FAPESP Nelio Bizzo, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (ICAQF-Unifesp).
A pesquisa, que contou com a colaboração de cientistas da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e da Università degli Studi di Trento (Itália), é fruto de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP que tem por interesse aprofundar questões relacionadas à inclusão da biodiversidade nativa no currículo escolar. O projeto é conduzido no âmbito do Programa BIOTA-FAPESP.
“Tínhamos interesse em investigar melhor essa questão entre religião e teorias da evolução, pois para entender a biodiversidade, sua geração e conservação precisamos conhecer os mecanismos evolutivos. São temas relacionados, o aluno vai compreender melhor as consequências da extinção de uma espécie, ou extinções locais e globais, por exemplo, se souber conceitos como da ancestralidade comum, da seleção natural, origem das espécies”, explica.
Verdadeiro ou falso
Ao analisar as respostas referentes a questões como “a formação do planeta ocorreu há 4,5 bilhões de anos”, “humanos descendem de outras espécies de primatas” e “fósseis são a prova de seres vivos que habitaram o planeta no passado”, entre outras, foi possível identificar padrões de maior ou menor aceitação entre os estudantes.
Os resultados mostraram que os católicos italianos aceitam mais a teoria evolutiva. O padrão nas respostas entre os estudantes católicos brasileiros foi mais semelhante ao dos cristãos não católicos brasileiros (grupo que abrangia diferentes denominações das igrejas neopentecostais).
De acordo com o artigo, o nível de compreensão sobre o tempo geológico, por exemplo, foi muito diferente entre católicos italianos e brasileiros. No entanto, houve um padrão semelhante de baixo conhecimento nas denominações cristãs do Brasil. A comparação das respostas mostrou que os católicos italianos tiveram uma aceitação maior, bem como um nível mais alto de compreensão da evolução do que os brasileiros.
No artigo publicado em PLOS ONE, os pesquisadores identificaram que a nacionalidade e fatores socioculturais, como o sistema educacional dos países, nível socioeconômico dos estudantes, capital cultural familiar, atitudes em relação ao conhecimento científico na sociedade em geral contam mais na aceitação da teoria da evolução.
“São dois países muito católicos. No entanto, existem grandes diferenças socioculturais relacionadas a fatores complexos, como a educação ”, avalia Bizzo.
O pesquisador ressalta que, apesar dos dados escassos, relatórios do Pew Research Center – um think thank norte-americano – confirmam que a rejeição da teoria evolutiva não é generalizada nem profundamente enraizada na sociedade italiana. “Já não se pode dizer o mesmo do Brasil. Outro estudo do Pew Research Center mostrou recentemente uma tendência de ascensão da perspectiva criacionista entre os adultos no Brasil, com uma aceitação consideravelmente menor da evolução pelos cristãos no Brasil [51%] do que na Itália [74%]”, completa.
A aceitação da teoria evolutiva tem sido aferida por muitos estudos nas últimas décadas por ser considerada um pré-requisito para a maior compreensão do tema. “No estudo não estamos nem discutindo compreensão da teoria evolutiva. Estamos um passo antes disso. A aceitação é um fator necessário para que se possa alcançar a compreensão. A grosso modo, quando você não aceita pensar sobre um determinado tema, a sua compreensão inevitavelmente está comprometida”, afirma.
Material didático laico
Com esse resultado, os pesquisadores sugerem que o material didático fornecido pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo sobre as teorias evolutivas de Charles Darwin não contemple o Gênesis – trecho da Bíblia que conta a história de Adão e Eva e a origem da humanidade de acordo com as doutrinas cristã e judaica.
“Muitas apostilas e materiais didáticos, ao falar de evolução, consideram que a religião isoladamente é o fator mais importante e aí misturam o relato do Gênesis com a teoria de Charles Darwin. A nossa pesquisa mostra que isso está errado. Do ponto de vista teórico, podemos até fazer algumas considerações sobre a laicidade do Estado. Mas não é o caso do nosso estudo, o que nós estamos mostrando é que não se deve partir do pressuposto de que é preciso contemplar religião para que o aluno aceite pensar sobre a evolução”, explica.
Salvos pela metodologia
O resultado da pesquisa vai de encontro a estudos anteriores, que indicavam a religião como fator central para que alunos rejeitem a teoria evolutiva. Estudos grandes, com mais de 6 mil alunos europeus, tinham constatado a influência da religião nessa questão.
Bizzo explica que essa discordância se dá por uma questão metodológica. Geralmente, os estudos sobre a temática utilizam questionários de escala Likert, muito adotados em análises de satisfação do cliente. Essa metodologia costuma oferecer cinco opções de respostas. Por exemplo, para uma afirmação sobre a idade da Terra, a resposta viria como uma opção entre cinco possibilidades: aceito muito, aceito pouco, indiferente, rejeito pouco ou rejeito muito a ideia de que a formação do planeta tenha ocorrido há 4,5 bilhões de anos.
“O problema é que o instrumento utilizado [escala Likert] confere uma medida numérica imprecisa para afirmações sobre fatos científicos. A variação de respostas pode gerar imprecisões quando somados os resultados. Por isso, para esse tipo de afirmação o melhor é sim ou não, verdadeiro ou falso”, conta.
Segundo Bizzo, a escala Likert não deve ser usada para temas científicos. “Descobrimos que, quando se apresenta uma afirmação reconhecidamente científica – por exemplo, vacina faz bem para a saúde –, aqueles que discordam o fazem sabendo que estão discordando de algo que é uma conclusão científica, assim como aqueles que concordam estão se posicionando a favor da ciência”, diz.
Outro aspecto metodológico está relacionado com o anonimato em pesquisas, estudos, sondagens sobre temas sensíveis, como, por exemplo, religião. “Pesquisas que tenham implicações religiosas, principalmente em contextos conservadores, devem ser realizadas de maneira a evitar aquilo que a literatura chama de social desirability [viés de desejo social]. O sujeito sabe qual é a expectativa que recai sobre ele e, então, atende a essa expectativa, sem expressar exatamente aquilo que pensa. A expectativa social pode ter contribuído para a imprecisão das medidas feitas por esses diferentes estudos”, diz.
O artigo Acceptance of evolution by high school students: Is religion the key factor? pode ser lido em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0273929#sec009.
Fonte: Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP