Repetir de ano: o que os especialistas pensam sobre essa prática?
Uma das reflexões abordadas no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2022 foi a repetição do ano escolar para os alunos que tiveram baixo desempenho. A discussão focou especialmente na repetição de ano para alunos que enfrentam desafios acadêmicos, questionando a eficácia e os reais benefícios dessa abordagem.
De acordo com a publicação do Pisa, a repetição escolar é muitas vezes implementada como uma oportunidade para que os alunos tenham uma “segunda chance” de aprimorar o domínio do conhecimento e das habilidades necessárias para sua série. No entanto, o relatório destaca que as evidências sobre os benefícios dessa prática são confusas.
Para entender melhor as implicações e perspectivas sobre a repetição escolar, conversamos com três especialistas em educação. Confira!
Voltar ao discurso da repetição é voltar ao século passado
Ângela Soligo, doutora em Psicologia e docente colaboradora da Faculdade de Educação da Unicamp, lança um olhar crítico sobre a questão da repetição escolar, desmistificando o discurso saudosista que muitas vezes permeia as discussões sobre educação. A especialista afirma que compreender a repetição como um mecanismo de melhoria na qualidade do ensino requer uma análise histórica e contextual.
O discurso frequentemente ouvido, segundo Ângela, que diz “no meu tempo a escola era boa, no meu tempo a educação era forte, no meu tempo, se não aprendesse, reprovava”, é uma ilusão que precisa ser desfeita. O “meu tempo”, de acordo com ela, representa um passado da educação brasileira marcado pela elitização e exclusão.
Até os anos 90, a escola pública brasileira era caracterizada pela exclusão, sendo pensada para atender predominantemente a classe média. Era uma instituição que, historicamente, excluía negros, pobres, crianças e jovens com deficiência, além dos residentes em zonas rurais e periferias. A exclusão, segundo Ângela, era um mecanismo seletivo da escola.
A prática de repetir de ano também era vista como um mecanismo de exclusão, onde aqueles que não se adaptavam às estratégias de ensino ou não se enquadravam nas condutas desejadas eram levados a sair da escola. O fracasso era atribuído ao aluno, perpetuando um ciclo prejudicial.
De acordo com a especialista, as reprovações não garantiam, necessariamente, um estímulo à aprendizagem no ano seguinte. Pelo contrário, os alunos repetentes retornavam à escola rotulados como incapazes, o que não favorecia a motivação e o desempenho acadêmico. Além disso, as dificuldades específicas de aprendizagem eram frequentemente desconsideradas.
A virada ocorreu em 1996 com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, seguindo os princípios da Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”.
A legislação instituiu como princípio fundamental a inclusão, defendendo a ideia de escola para todos, representando um avanço significativo na busca por uma educação mais inclusiva e igualitária, enfatiza Ângela.
Para a docente, voltar ao discurso da repetição é voltar ao século passado, é voltar a pensar em uma escola não para todos, mas para uma escola que exclui, que não promove a aprendizagem de todos.
“Essa escola que exclui não é uma boa escola porque é incapaz de ensinar na diferença. O que precisamos é de uma política séria, comprometida verdadeiramente com a educação pública e com nossa sociedade brasileira tão diversa e desigual”.
Repetir de ano: controvérsias e desafios sociais
O tema da repetência na educação básica é palco de uma controvérsia geracional entre os educadores, afirma Jair dos Santos Junior, professor e consultor das Santos JR Consultoria Educacional.
De acordo com ele, a discussão se polariza entre os que defendem a repetência como uma garantia de formação completa e os que a consideram uma prática cruel que gera segregação, especialmente entre crianças com condições sociais desfavoráveis ou desafios de atenção.
O grande desafio, segundo Santos Junior, não está apenas em reter o jovem na série ou no ano, mas em mantê-lo na escola. Ele ressalta que a educação básica desempenha uma função social fundamental, indo além da mera diplomação. “A verdadeira missão é promover a inclusão, a socialização e a educação social em seu sentido mais amplo”, afirma.
A escola, argumenta o consultor, é o espaço privilegiado para a educação social, permitindo combater desvios de valores, violência e promover a tolerância, a democracia e a convivência.
Para o especialista, a escola não é apenas uma instituição que confere graus acadêmicos; é uma oportunidade para o Estado alcançar cada indivíduo, transformando-o em um membro ativo, colaborativo e sociável da sociedade.
No que diz respeito à formação, o consultor destaca que os educadores têm desenvolvido teorias e práticas para recuperar a aprendizagem, incentivar os estudos e desenvolver competências.
Além disso, apontou para a necessidade de considerar o crescimento e desenvolvimento das crianças e adolescentes em comparação ao ano civil, ou até ao ano fiscal, como um caminho para aprimorar o processo educacional no país.
Repetição traz mais malefícios do que benefícios, diz educadora
Para Sonia Simões Colombo, CEO da Humus e presidente do Instituto ELA Educadoras do Brasil, a repetição traz mais malefícios do que benefícios.
“Precisamos esgotar todas as possibilidades e alternativas de apoio ao aprendizado antes de tomar a decisão pela repetição do ano, pois esta pode não garantir a superação de dificuldades subjacentes”.
Segundo Sonia, a repetição escolar geralmente acarreta inúmeras consequências negativas para os alunos, tais como como diminuição da autoestima, desmotivação, infelicidade e isolamento social. Também é um fator que pode aumentar o risco de evasão escolar.
A CEO da Humus defende que as escolas adotem estratégias preventivas para evitar que o desempenho do aluno fique altamente prejudicado que o leve ao fracasso. Algumas práticas recomendadas incluem:
– Intervenção precoce, identificando e apoiando os discentes com dificuldades de aprendizagem logo no início para oferecer suporte adicional;
– Adoção de métodos de ensino que se adequem ao ritmo de aprendizagem de cada aluno, permitindo o avanço de acordo com as competências adquiridas;
– Oferecer aulas de reforço para alunos que precisam de ajuda extra em determinadas disciplinas;
– Adotar avaliações contínuas e formativas para identificar áreas de dificuldade e ajustar o ensino de acordo com as necessidades dos alunos;
– Conceder feedback constante com orientações personalizadas, com acompanhamento direto do professor;
– Disponibilizar suporte que ajude os alunos a lidarem com questões emocionais e sociais que possam interferir no seu desempenho acadêmico;
– Buscar o apoio da família, solicitando o acompanhamento nas atividades escolares com auxílio efetivo para obtenção do sucesso em cada etapa a ser superada pelo aluno;
Sonia acredita que a atuação conjunta da equipe escolar e da família contribui significativamente para reduzir a repetição escolar, promovendo um ambiente de aprendizagem que leva às superações das dificuldades e, consequentemente, o sucesso do aluno.
Você também pode gostar disso:
Escolas cogitam abolir o dever de casa; colégio de SP é exemplo