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De jaleco azul e Bandeira do Brasil bordada na manga, um homem de meia-idade estaciona no corredor da escola. Com uma prancheta na mão, controla a saída dos adolescentes da sala de aula. Desde agosto, o colégio municipal Professor Lafayette Rodrigues Pereira, na periferia de Taubaté (SP), vê chegar uma pequena tropa de militares da reserva todos os dias, contratados com dinheiro público para garantir a ordem, fazer rondas, apoiar a direção, ensinar “valores” e o Hino.

Bandeira do atual governo, o programa de colégios cívico-militares não alcança nem 0,1% das escolas públicas e paga só em adicional a militares da reserva mais do que ganham professores. O governo enaltece “padrões de ensino de colégios militares” e o foco na disciplina agrada a parte dos docentes e diretores. Entre pais de alunos, há esperança de que a criança siga nas Forças Armadas – o que o modelo não prevê.

Militares da reserva de Marinha e Aeronáutica têm, além da renda de inativos, média de R$ 4.130 para atuar nas escolas, segundo dados obtidos pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação. O Exército não informou.

Patentes mais altas, como as de coronel e capitão, chegam a ter R$ 7 mil por mês em adicional. O bônus de 30% incide sobre a renda bruta que, nesses casos, supera R$ 20 mil. E há benefícios: férias, auxílio-alimentação e gratificação natalina.

De janeiro de 2020 a julho de 2021, Marinha e Aeronáutica pagaram R$ 10,4 milhões em adicionais a 323 militares da reserva nas escolas. No total, 510 participam. No ano passado, o Ministério da Educação (MEC), que foi à Justiça para não colocar internet na rede pública, transferiu à Defesa R$ 55 milhões para pagar os militares.

Professores do Brasil têm os salários iniciais mais baixos de 40 países avaliados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O piso é de R$ 2.886 e o salário médio bruto, de R$ 4.040, segundo dados do MEC. Especialistas criticam a prioridade a militares, e não a educadores. Já diretores de colégios escolhidos elogiam o silêncio nas escolas com a vinda dos oficiais e celebram verbas que não vinham antes, para contratar profissionais, como coordenadores pedagógicos, e reformas.

Novidade

“Só de saber que é alguém que veio das Forças Armadas, um soldado, que socialmente tem hierarquia maior, o aluno já pesa se vai fazer algo. Isso indica respeito, não é medo”, diz Marcelo Martins, diretor da Escola Quinze de Novembro, em Feira de Santana (BA), com nove militares. Ele diz que a circulação de alunos nos corredores na hora da aula acabou. Até na ida ao banheiro o militar acompanha o aluno até a porta.

Os comandos da ordem-unida, como “sentido”, “firme” e “descansar” – comuns nos quartéis – são ensinados aos jovens, “para que fique disciplinado em seus corações e mentes”, diz o capitão de fragata José Aderaldo de Miranda, oficial de gestão escolar – espécie de assessor do diretor da escola. Na Quinze de Novembro, além dele, há sete militares de monitores, e um oficial de gestão educacional.

As outras escolas têm modelo similar, com até 16 militares. Pelos dados da Marinha, Miranda recebeu por mês, desde junho de 2020, média de R$ 8.163 só em adicional, incluindo gratificações. Na escola, até o diretor ganha menos (R$ 6,9 mil). O militar diz que o bônus tem desconto de imposto e destaca os 30 anos de serviço “em altomar” e o mestrado em Educação. “Fica um pouco acima dos professores? Fica, mas nossa tarefa não é de competição”, diz.

A regra não indica formação mínima exigida do militar – a Defesa diz fazer análise curricular. A jornada diária é de 8 horas.

O MEC prevê 127 escolas do tipo este ano e 216 até 2023. O País tem 138 mil colégios públicos. Na Escola Natividade Saldanha, em Jaboatão dos Guararapes (PE), alunos prestam continência ao professor e há regras para cabelo e adereços: black power é vetado. Houve até mutirão de cabeleireiro e “aula” para as meninas aprenderem coque. “Como vou colocar boina em cima do cabelo que não cabe a boina?”, indaga o gestor Juarez Ribeiro. A procura de pais, conta ele, foi maior que as vagas e foi preciso sorteio.

“Meus pais acham que vai ter disciplina melhor. E minha mãe perguntou se eu queria ficar na carreira de militar”, diz Lara Stefhany Moraes, de 12 anos, da escola em Taubaté e filha de cozinheira e pedreiro. Em contas nas redes sociais criadas para essas escolas, famílias perguntam sobre a chegada da farda.

Os militares ajudam a diagnosticar um problema que o MEC conhece: déficit de profissionais. A Escola Natividade Saldanha (PE) recebeu oito coordenadores pedagógicos (civis), contratados pela prefeitura, além de 14 militares. As aulas presenciais voltam este mês, após quase todo o ano online.

Vanessa Moreira, diretora do colégio em Taubaté, espera 13 funcionários, após receber seis militares em agosto. Na cidade, professores de outras escolas relatam problemas como computadores velhos, falta de materiais e estrutura nas quadras. A Lafayette Rodrigues tem oito docentes com piso de R$ 2,5 mil para 24 horas semanais. “O militar traz da carreira civismo, respeito e cidadania”, diz o coronel do Exército Walter Valle, do apoio à direção. Ele diz ter experiência com formação de cadetes e, sobre o bônus de R$ 7 mil a coronéis, destaca o desconto de imposto e a previsão legal.

“O que falta à escola é dinheiro”, critica o professor de História Lenin Soares, de um colégio em Parnamirim (RN) que recebeu militares, mas atrasou a volta presencial por um problema judicial envolvendo merenda. A prefeitura não comentou. Parte dos professores teme ainda o controle. “Cheguei desconfiado, principalmente com a ideia de tolher a liberdade. Falo sobre ditadura militar”, diz Soares. O programa não prevê interferência no conteúdo.

A prefeitura de Taubaté diz que o pagamento de militares é contrapartida do MEC e faz estudos para melhorias a servidores nas demais escolas. A Defesa ressalta que militares desempenham ações para a “gestão de excelência” e, na pandemia, ajudaram a reduzir repetência e evasão. Também afirma que a contratação e o pagamento dos militares são de competência de cada uma das Forças. Já os vencimentos de docentes civis, diz a Defesa, é de responsabilidade de governos locais. Procurado, o MEC não se posicionou.

Colégios têm Instagram com políticos e consulta virtual

O processo de escolha do colégio que vai se tornar cívico-militar nem sempre é calmo – há casos até na Justiça. Na pandemia, consultas a pais e professores foram por formulários virtuais e, segundo os diretores, as pesquisas indicaram alta adesão. Parte dos pais e docentes questiona e uma parte diz saber da mudança pela imprensa.

A escolha das escolas ocorre após adesão da prefeitura ou Estado. Segundo o MEC, as eleitas têm de estar em situação de vulnerabilidade social e com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O programa é para os anos finais do fundamental e ensino médio.

Sônia Laide, diretora da Escola Prefeito Jorge Bierrenbach Senra, em São Vicente (SP), disse que a primeira audiência pública de esclarecimentos sobre o modelo foi em maio, pela internet, mas só dois pais participaram. “A maioria não tem nem celular, o que dirá internet.” Depois, a diretora fez consulta presencial com 302 pais, com maioria (199) contrária. A nova consulta foi questionada pelo deputado estadual Tenente Coimbra (PSL), defensor do modelo.

Houve até panfletagem na porta da escola para convencer pais e ataques à diretora nas redes sociais. Nova pesquisa resultou na aprovação do programa, com 130 votos favoráveis e 38 contrários – há 1,4 mil matriculados. Em Sorocaba (SP), a Justiça vetou em maio a adesão por não ver cumprido o critério de vulnerabilidade e baixo Ideb. Também houve veto judicial em Taquaritinga (SP) e a prefeitura avalia outros locais.

Na Escola Carioca, no Rio, o modelo já foi adotado. Lá, um grupo de pais apoiadores alega que o manual de práticas da escola não é mais seguido. Em maio, a diretoria da Carioca foi exonerada pela Secretaria Municipal da Educação (SME) por “desrespeito ao protocolo sanitário e por conduta incompatível com o ambiente escolar”.

Os alunos foram filmados no pátio, em cerimônia de hastear bandeiras. Aglomerados, eram obrigados a repetir frases ditas por um adulto: “Muitos querem, mas não podem / Nós queremos e podemos / Nós somos nós e o resto é o resto / Brasil acima de tudo, abaixo de Deus”.

Hoje, esse grupo de pais critica nas redes a falta de rigor com o uniforme e exalta outros colégios que, segundo eles, “têm projetos mais vocacionais para o militarismo”. Esses pais se aproximam de parlamentares apoiadores do governo  e já usaram as dependências da escola para homenagear políticos, como na celebração de aniversário do colégio. A SME diz que os parlamentares foram convidados por uma mãe sem aval do diretor.

No Instagram da escola, foi compartilhado vídeo de Tenente Coimbra, em que ele diz ser meta de seu mandato criar escolas cívico-militares. Após questionamento do Estadão, a publicação foi retirada. A pasta diz que a postagem foi um equívoco e não é prática da SME “falar sobre missões de parlamentares”. Fotos e vídeos de políticos também aparecem em contas de outras cívico-militares nas redes. Procurados, MEC e Coimbra não falaram.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Júlia Marques