Em 1978, o compositor Aldir Blanc falou em “esperança equilibrista” para definir o momento político conturbado e de incertezas pelo qual o Brasil passava. O historiador e professor Leandro Karnal, que lança o livro A Coragem da Esperança, escreve que este sentimento, hoje, apesar das transformações e desafios pelos quais o mundo enfrenta, está no décimo segundo andar pronto para, sem cordas, saltar e se transformar em algo “fértil e vicejante”.
“Entendo o prudente ceticismo, mas sou esperançoso. Quando encerro as crônicas dizendo que é preciso ter esperança é porque ela é necessária para existir”, diz Karnal. O livro traz uma reunião de textos publicados no Estadão, no qual Karnal escreve às quartas e domingos – neste dia 11, aliás, o jornal vai publicar a crônica de número 500 do autor.
Essa provocação com o pensar em um amanhã diferente está em textos como O Controle, no qual ele discorre sobre radicais e diz que a esperança raramente está neles. Em A Ira das Pombas, Karnal fala sobre ódios e redes sociais – as quais ele classifica como um sistema de vigilância humana jamais visto anteriormente – e diz que é preciso voar alto para escapar dessas labaredas.
A esperança também está nas crônicas de ficção que Karnal começou a escrever no ano passado. A primeira delas, As Quatro Vítimas do Chá, chegou primeiro às páginas deste jornal e fala sobre decadência, um dos temas que se tornaram recorrentes nelas. Porém, mesmo em meio a um processo de degradação, a recomendação do autor é uma boa dose de fé no que virá.
Em entrevista por telefone, Karnal falou sobre o tema que une os textos, divididos em seis partes, os quais o escritor Ignácio de Loyola Brandão recomenda, no prefácio, ler com calma; e também sobre solidariedade, redes sociais e fama.
Esse é o quarto volume com coletâneas de textos que o senhor publica. O processo de seleção dos textos já está mais fácil?
É curioso observar como alguns textos envelheceram rapidamente, perderam o sentido do tema mais quente. Outros permanecem dialogando com o momento atual. É natural. Para este livro, eu tinha mais opções de crônicas do que os anteriores. Escrevi novos textos, subdividi em itens. Então, aqui, a dificuldade foi o que deixar de fora. A novidade é que, pela primeira vez, eu passei a escrever crônicas de ficção. No ano passado, enviei a primeira crônica de ficção para ser publicada no Estadão, As Quatro Vítimas do Chá. Elas me dão um imenso prazer. É uma maneira de ver as coisas sem o compromisso com o rigor dos fatos. Às vezes, é um manifesto político, outras, uma reflexão sobre a decadência, aliás, tema esse recorrente.
Por que começou a escrever ficção nesse período tão significativo para a humanidade?
No século 16, as pessoas liam poesias épicas, como Os Lusíadas. Uma das obras mais populares de Shakespeare é o poema Vênus e Adônis, que ninguém mais lê hoje em dia. No século 17/18, surge o romance, uma história mais linear. A crônica é a alma do século 20/21, porque ela é curta e permite uma experiência similar ao conto, completa, em uma única sentada. Enquanto romances como Ulisses, de Joyce, e Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, precisam de mais tempos para serem digeridos em sua magnitude, a crônica permite que você se sente no sofá com seu celular ou com o jornal e tenha a experiência do início, meio e fim. Ou seja, ela é adequada à demanda de tempo atual das pessoas. Hoje, somos mais Hai-Kai do que poesia épica. Não lamento. Não estamos menos inteligentes, mas com menos tempo.
O senhor cita no prefácio do livro que a cada ano seus textos são publicados em mais jornais. O que isso modifica seu modo de escrever?
Meus assistentes dizem que minha palestra para dez ou para 40 mil pessoas é muito parecida, que eu me dedico por igual. O tamanho do público não altera a forma. Claro, se eu estiver falando em um estádio, não é a mesma coisa se eu estivesse falando com a diretoria de uma empresa, para 5 ou 6 diretores. O tom de voz e a gesticulação mudam. Acho que isso (essa ampliação de publicações) me obriga a pensar fora da casca de ser um cidadão do Sul que mora em São Paulo há mais de 30 anos, que pensa a realidade dessa cidade. O Brasil que percorri no mundo anterior à peste é muito diferente. Tento pensar de maneira mais ampla. Claro, tenho um lugar. Aquilo que Fernando Pessoa fala sobre o rio da aldeia dele. Tolstoi diz que o grande desafio é universalizar sua aldeia. Como não sou Pessoa e nem Tolstoi, tento pensar mais amplo, evitando um sotaque forte. Tornar-se um influenciador implica uma grande responsabilidade.
É imperativo debater a esperança em tempos como o atual?
Nem sempre a esperança foi vista como algo positivo. Os gregos a colocaram como o último dos males na caixa de Pandora. Nietzsche, grande especialista em cultura grega, diz que a esperança é uma crueldade. Você diz para aquela pessoa em estado terminal de câncer: vai dar tudo certo. Você sabe que não. Sou uma pessoa com uma carga de realismo muito grande. Mas, se eu, como professor, perder a esperança, não tenho por que educar alguém. A esperança, para mim, que tenho formação religiosa, me torna mais produtivo. Então, se não for depressão, que é uma doença, ser pessimista é ser vagabundo. A pessoa adota a desesperança como estratégia de imobilismo. Entendo o prudente ceticismo, mas sou esperançoso. Quando encerro as crônicas dizendo que é preciso ter esperança é porque ela é necessária para existir. Eu, com 58 anos, tenho até o direito de ser cético e pessimista, mas não posso dizer a alguém de 18 anos que a vida é um horror, até porque ela tem o direito de imaginar que ela seria boa.
Para alguns, a esperança passa pela religião. Outros, por um novo amor, uma oportunidade de trabalho, a mudança de um governo, a chegada de um filho. Há ponto comum nesses anseios?
Você constata que o mundo é imperfeito e imagina um mundo perfectível, no sentido de que ele pode ser melhorado. Há religiões mais imobilistas que outras. Porém, os religiosos sabem, como disse Ignácio de Loyola, que eu tenho que rezar como se o homem fosse inútil e trabalhar como se Deus não existisse. Gosto também do ditado árabe que diz “confie em Alá, mas amarre bem seu camelo”. Os políticos, os pais e os professores têm que pensar em um mundo possível melhor. Um dos dramas atuais é a naturalização da crise, como se sempre tivesse sido assim. Desde 2013, quando tivemos manifestações massivas, as pessoas acham que a política é essa que se mistura com as páginas policiais. Não foi sempre assim. É preciso desnaturalizar essa crise e pensar que podemos fazer algo que torne a realidade atual melhor.
Porém, assim como a felicidade, a esperança pode não ser um estado ou um sentimento contínuo. A desesperança pode trazer algo de bom?
Não creio que haja algo positivo na desesperança. No ceticismo, sim. É bom ter uma dose dele para impedir que você consuma elementos de propagandas políticas e de mercado. É preciso ter o ceticismo filosófico, o que dá origem ao pensamento crítico. Agora, a desesperança como o abandono da crença, de que as coisas possam ser diferentes, para mim, hoje, é fruto de uma estratégia muito conservadora que quer apresentar como imutável algo que é perfeita e historicamente mutável. Seria como eu dizer a um ser humano escravizado em 1800 que a escravidão sempre vai existir. Ou dizer a uma mulher na década de 1930 que ela nunca poderia votar. É querer naturalizar uma estratégia de exploração. A esperança é revolucionária.
No livro, o senhor diz que a esperança está na inteligência, no viver, talvez na paz, em um silêncio produtivo. Mas também pode ser amordaçada pela ditadura e, por vezes, se apresenta combalida, sufocada pelo ressentimento. Em que momento estamos?
Apesar de as ditaduras poderem ser absolutas, totalitárias – e o melhor exemplo hoje no planeta é a Coreia do Norte -, mas já tivemos no passado o stalinismo, o nazismo e as ditaduras de direita e esquerda na América, a liberdade pode ser amordaçada, torturada, mas ela não morre. Ela é uma espécie de Orlando, da Virginia Woolf, uma fênix que renasce constantemente. Ela é um instinto. Nós estamos em um momento de liberdade arranhada, mas não por riscos à democracia ou por projetos totalitários. Não porque haja como há no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa pessoas com tendências ditatoriais, mas porque aceitamos um sistema de vigilância humana inédito. Nós permitimos que grandes corporações usem nossos dados. Permitimos sermos catalogados por um algoritmo. O nazismo não tinha tantas informações dos alemães quanto a atual democracia alemã tem. Eu posso saber a sexualidade da pessoa sem ela me dizer nada, apenas olhando o que ela acessa no Google ou no YouTube. É uma ameaça à liberdade muito maior do que ameaças de golpe de Estado de republiquetas de bananas como temos na América de tempos em tempos. Muito maior do que esses golpezinhos de quinta categoria que temos no Brasil, no Chile e na Argentina. É mais sutil e sofisticado porque é feito em nome da liberdade.
Há uma crônica em que o senhor fala sobre as lives, sobre a dor de ser anônimo em um momento no qual todos querem, de alguma forma, serem vistos. Onde está o equilíbrio?
A vontade da glória, da fama, é antiga. O homem tocou fogo no Templo de Diana em Éfeso para ficar conhecido. Mitologicamente, dizem ao guerreiro Aquiles, quando ele nasce, se ele quer uma vida longa e ser anônimo, ou prefere morrer jovem e ficar conhecido pelos próximos dois mil anos. Ele prefere morrer jovem. Hoje, todos os Aquiles, até os que não têm habilidade de guerreiro, têm uma rede social. Não precisam usar lança e escudo. A fama virou um oxigênio. Assim como eu sou um fenômeno, isso desaparece com uma rapidez extraordinária. É o mundo líquido do (Zygmunt) Bauman. No século 19, os historiadores diziam: se não tiver documento, não tem história. Hoje, se não tiver post, Reels e TikTok, não tem história. É um novo tipo de positivismo no qual a realidade é dirigida pela publicação. Há 30 anos, quando eu dava palestras, eu era um recém- pós-graduado, as pessoas diziam: ele publicou um livro, fala tantas línguas. Hoje, falam: ele tem 7 milhões de seguidores. É o primeiro dado do meu currículo. O valor do indivíduo é medido em reais pelo número de seguidores que ele tem.
Como reage às fake news e aos textos atribuídos a você – alguns já foram até desmentidos pelas agências de checagem?
Quando eu entrei na Unicamp, na década de 1990, vi um aluno com uma camiseta na qual estava escrito “amor é fogo que arde sem se ver” e, embaixo, “Renato Russo”. Eu pensei: como alguém confunde o Sonetos de Camões com a música Monte Castelo? A falsa atribuição é clássica na história – e muitas vezes manipulada. Comigo acontecem três situações. A primeira é eu citar algum autor e aparecer como se fosse uma frase minha. Por exemplo, falo na minha palestra “a consciência nos torna covarde”, de Hamlet, em seu monólogo. A pessoa ignora que eu disse que essa é uma frase de Shakespeare. A segunda – e eu não sei qual o processo genético disso – são textos que circulam com minha assinatura. Há pouco foi um sobre uma comunidade judaica na Grécia. Eu nem conhecia essa história. A terceira, de infidelidade, que é maldosa, é a retirada de uma frase de um contexto e citada como exemplo da minha imbecilidade. Me sinto como um salmo da Bíblia que diz “Deus não existe”, mas ignoram o complemento que é “diz um insensato em seu coração”.
Há uma crônica, chamada O Outro, na qual o senhor aborda a solidariedade – e a falta dela. O famoso “o que eu tenho com isso?”. A solidariedade é um caminho para dias melhores?
Sem o outro, é difícil eu ter consciência de mim. Primeiramente, a solidariedade é um esforço para perceber que existe o outro – e isso é um pouco complicado nos dias de hoje. Em segundo lugar, a solidariedade melhora a mim. Sou obrigado a ser sensível à dor, como diz uma música, à vendedora de chicletes (Burguesia, de Cazuza), porque isso vai me tornar uma pessoa melhor. Não para ganhar o céu, pois não sou religioso – mas para evitar que o mundo vire um inferno. O cada um por si é, geralmente, uma estratégia de quem está muito bem, está por cima, e vai dizer que chegou lá porque teve muito empenho. A solidão é fundamental para a consciência, mas não como um status permanente.
Em um dos textos, o senhor escreve que “A glória de Romeu e Julieta foi terem vivido tudo em menos de uma semana”. Ou seja, a rotina pode ser cruel, frustrante. O senhor aponta a resiliência, a criatividade, como antídotos a isso. O que fazer, na prática?
É preciso entender que existe muito entusiasmo em uma inauguração. O momento em que um empreendimento começa, o livro que você sentou para escrever, o primeiro dia de uma faxina. Mas vou lhe dizer uma coisa: eu só mando os parabéns para um jovem escritor a partir da segunda obra. Um espasmo de qualidade quase todo mundo consegue. A lua de mel não é o casamento. Ela é o período mais enganoso do casamento. Talvez ele comece nas bodas de prata. O amor de Romeu e Julieta é o pior do mundo. Viram-se uma vez e se apaixonaram. Não é um bom exemplo de amor. É um exemplo de tesão. Isso é um bad love, como dizem os americanos. O amor é uma construção lenta, que requer intimidade. O amor descrito com drama, como em O Amor Nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, em que o casal acorda em horários diferentes e se irrita durante décadas com essa diferença, é um desafio muito maior. A energia de continuar tentando é o que eu admiro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
por Danilo Casaletti, especial para o Estadão
Foto: Daniel Teixeira/Estadão