Trend do corte seco: imitando youtubers, crianças ‘comem’ sílabas ao falar
- “Mãe, a Helena pegou meu casá!”
- “Teacher, posso ir ao banhê?”
- “Eu tô com fó!”
As frases acima foram ouvidas por mães e professoras que já estão desesperadas: não aguentam mais ouvir as crianças “comendo” a última sílaba de cada sentença. “Preciso pegar o livro”, por exemplo, vira “preciso pegar o lí”. Os adultos que lutem, em casa e na sala de aula, para adivinhar qual palavra foi encurtada.
“Surto todo dia com isso!”, diz a escritora Carol Campos, mãe de Pedro, de 9 anos (que ama tomar água de “cô” e ir ao “cinê”).
Essa “mania linguística” — que atinge principalmente alunos de 5 a 12 anos — virou “a trend do corte seco” no TikTok: familiares gravam crianças falando desse jeito e postam o vídeo nas redes (alguns, apenas para efeitos de humor, outros, para compartilhar a angústia de não escutar as frases até o final). Um desses registros passou de 3 milhões de visualizações.
Mas de onde veio essa moda? Isso pode ser prejudicial para o desenvolvimento infantil? O g1 entrevistou fonoaudiólogas e educadores para entender as possíveis consequências da brincadeira. Em resumo:
- Como o hábito de cortar sílabas provavelmente é resultado da influência de youtubers na linguagem das crianças (entenda mais abaixo), pode ser que o tempo de exposição a telas esteja excessivo.
- Quem “come” o fim das palavras acaba comprometendo a clareza da comunicação. Isso dificulta o diálogo.
- O “corte seco”, para alguns especialistas, prejudica crianças em fase de alfabetização, especialmente nos processos de formação de palavras e de fluência leitora.
- Por outro lado, se o aluno já dominar bem essas habilidades, pode usar a brincadeira como estímulo cognitivo (desde que não passe o dia inteiro falando desse jeito, claro).
De onde veio a febre do “corte seco”?
“Noto que são os alunos maiores, com acesso ao celular, que acabam falando desse jeito”, conta Clarice Kumaru, professora de inglês do ensino fundamental I em uma escola particular de Canhotinho (PE).
Ela explica que alguns youtubers e tiktokers produzem vídeos infantis com este estilo de edição, para que os posts fiquem mais dinâmicos: o corte seco é feito no final das frases, antes mesmo de as palavras serem ditas por inteiro.
“Se você assistir a um vídeo dos Irmãos Natu, por exemplo, vai notar esses pequenos cortes. As crianças imitam com mais exagero: já tiram a sílaba inteira”, diz a docente. “Virou um hábito constante, até na hora de pedirem para beber água.”
Em São Paulo, a escritora Carol Campos, citada no início do texto, também percebe essa associação entre o celular e a nova mania das crianças.
“Infelizmente, a forma de falar dos influenciadores digitais, especialmente os do Youtube, não ajuda muito. É tudo rápido e até com certo grau de agressividade”, diz. “E não é algo raro. [Com o meu filho], acontece de ‘comer’ as palavras principalmente quando ele está nos contando algo da escola. Como me incomoda bastante, sempre o alerto.”
Os efeitos são em cadeia
Um aluno, espectador assíduo de “shortz” no Youtube, começa a imitar os influenciadores e a cortar a última sílaba das palavras na escola. Mesmo os amigos que não assistem aos vídeos passam a imitá-lo. O que começou em um grupinho já contagia a sala… e a escola inteira.
“Em outro colégio onde eu dava aula, o hábito era ainda maior, porque todos tinham resistência a falar do jeito normal. Só queriam [pronunciar ]‘cortado’. Quando eu pedia para falarem a palavra completa, ficavam com vergonha e desistiam”, conta a professora Clarice.
O “corte seco” pode prejudicar as crianças?
Não há consenso entre os especialistas: há quem ache que é apenas uma brincadeira inofensiva, como a antiga “língua do p”, enquanto outros se preocupam com os possíveis danos na alfabetização e na comunicação infantil. Veja os pontos principais:
Excesso de telas e sintoma da vida acelerada:
Se a criança estiver sendo influenciada pela maneira como youtubers falam, talvez isso seja um sinal de que ela passa tempo de mais em frente a tablets e celulares.
A fonoaudióloga Ângela Ribas, do Hospital Pequeno Príncipe (PR), reforça que os responsáveis devem limitar o tempo de exposição a telas. “Crianças em fase escolar necessitam de estímulos muito mais ricos do que aqueles produzidos na internet”, afirma.
É a mesma preocupação manifestada por Carol, mãe de Pedro. Ela faz um balanço: seu filho fica mais tempo diante de ‘youtubers’ do que de contadores de história, por exemplo.
“Achei que essa mania de cortar as palavras existisse só na escola do meu filho. Mas, ao entender que virou uma ‘trend’, fico pensando se não estamos criando uma geração que quer acelerar tudo. Já estão escrevendo cada vez de forma mais abreviada quando usam celular”, conta. “Querem tudo mais rápido e mais curto.”
Américo Amorim, pesquisador afiliado na New York University e doutor em educação pela Universidade Johns Hopkins, também destaca o cuidado que devemos ter para não “agitar” tanto a vida das crianças. “Deixá-las assistirem a vídeos na velocidade 2x pode aumentar os níveis de ansiedade delas”, afirma.
Perda de sentido nas frases:
Amorim lembra que as últimas sílabas das palavras, na língua portuguesa, trazem mudanças importantes no significado, como: o gênero (“aluno”, “aluna”), o número (“sanduíche”, “sanduíches”), o tempo verbal (“caminharam” ou “caminharão”), a pessoa verbal (“participou ou “participei”) etc.
“Pode haver situações em que a própria formação de vocabulário vai ficar prejudicada, porque a criança não ouve a palavra inteira. Isso atrapalha também a interpretação textual”, diz.
A fonoaudióloga Mayra Camargo, mestre em distúrbios da comunicação e especialista em linguagem oral, presencia exemplos tanto com pacientes quanto com suas filhas.
“Insisto na importância de uma comunicação clara e articulada. Aqui em casa, eu vejo que uma criança precisa ficar perguntando para outra: ‘quê? O que você falou?’. E não é algo pontual: virou uma mania que dificulta o diálogo”, diz.
Dificuldades na alfabetização ou estímulo cognitivo:
Nesse tópico, os especialistas ouvidos pela reportagem demonstraram diferentes posicionamentos. Amorim, por exemplo, afirma que o “corte seco não é bom para a alfabetização nem para a fluência da leitura”, porque os alunos podem passar a achar que as palavras são deste jeito, “cortadas”.
“Isso gera problemas na escrita e na compreensão dos diferentes tempos verbais”, diz.
Já a psicóloga e educadora Cláudia Tricate, diretora do Colégio Magno (SP), acredita que haja uma problematização excessiva no que é apenas uma brincadeira.
“A língua do p’ de antigamente, não atrapalhou ninguém. É natural experimentar esses jogos linguísticos. Não há razão para se preocupar”, afirma.
Essa também é a linha de raciocínio de Ribas, fonoaudióloga do Pequeno Príncipe. Ela diz que “comer” a última sílaba da frase ainda desenvolve estratégias mentais e cognitivas das crianças. “Elas aprendem a manipular os sons das palavras”, diz.
Tudo vai depender também da faixa etária e do perfil dos alunos. É preciso monitorar se a brincadeira está interferindo na aprendizagem.
Falta de acessibilidade:
Mayra Camargo, citada mais acima, diz que atende pacientes com distúrbios no processamento auditivo central — eles ouvem bem, mas não conseguem prestar atenção a todos os sons de uma palavra. Em geral, acabam se atendo sempre ao fragmento final de cada termo. “O que fica na cabeça deles é o último som que escutaram. Com essa brincadeira, isso se perde. Vão ser prejudicados”, afirma.
‘Meu filho não para de fazer o corte seco. Devo intervir?’
⌚ É preciso estipular o momento certo para a brincadeira. A criança deve entender que nem todos os contextos são adequados para fazer esses jogos de sons. Se, no meio da aula ou ao conversar com os pais, ela insistir em cortar as sílabas, você deve intervir. Explique que, para uma conversa dar certo, todos os participantes devem se comunicar de forma clara e eficaz. Sugira alguma outra oportunidade para que ela faça o “jogo do corte seco” — talvez, durante a visita de um amiguinho no fim de semana.
📖 Fique atento principalmente se seu filho estiver em fase de alfabetização. Não há uma conclusão científica única a respeito de possíveis prejuízos no aprendizado da leitura e da escrita. Se você notar que a criança está pulando algumas sílabas ao redigir uma frase, converse com ela e com os professores. E, caso ela tenha um colega com distúrbios no processamento auditivo central, explique que a brincadeira deve ser evitada para que ninguém se sinta excluído.
📵 E o principal: fique atento ao tipo de estímulo que seu filho está recebendo. Ele precisa estar mais exposto a diálogos no dia a dia e a contação de histórias, por exemplo, do que a vídeos do TikTok ou a “shortz” do Youtube. Não permita que o principal “influenciador” da linguagem da criança esteja do outro lado de uma tela.
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