Quais as contribuições da BNCC para a educação socioemocional?
A implementação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem sido um tópico muito comentado entre gestores escolares e educadores. Afinal, essa novidade representa um marco para o processo educacional sobre o qual é importante que toda equipe pedagógica esteja a par. Mas considerando que o papel da escola vai muito além do conteúdo intelectual, não se pode esquecer de uma de suas principais missões: a educação socioemocional.
Assim, o que a nova BNCC apresenta em relação ao aspecto socioemocional do desenvolvimento dos alunos nas escolas? Danila di Pietro, mestra e doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação UNICAMP, conta que em 2017 a BNCC “colocou as escolas para remexer um pouco nas suas matrizes, conteúdos, na maneira como cada escola organizava os componentes curriculares”, levantando a questão: o mínimo realmente está sendo contemplado nesse esquema? Segundo Danila, o objetivo agora é garantir o mínimo sem excluir o que é particular de cada região.
Para que isso aconteça de fato, é preciso tomar os cuidados necessários para não padronizar as escolas do norte ao sul do Brasil ao mesmo tempo em que reconhecemos os conteúdos de base que não podem faltar em uma formação. As novidades da BNCC devem ser aplicadas, então, de modo a encorajar uma educação com o princípio de autonomia – “afinal de contas o nosso maior objetivo da educação sem dúvidas é preparar, emancipar essas pessoas para que elas possam viver criticamente no contexto que lhes pertence”, diz Danila.
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Essa educação deve ser, portanto, integral – não apenas intelectualmente, mas em todos os sentidos da formação de um ser humano completo, incluindo os aspectos afetivos e socioemocionais. Essa dimensão foi um ponto importante na nova BNCC, mas já existe e tem sido discutida há muito tempo. Assim, para entender as novidades trazidas pela nova base curricular, precisamos antes compreender o que compõe, de fato, uma educação socioemocional.
Danila explica que essa é uma educação voltada ao sentimento, à emoção, onde o sujeito é singular com seu entorno. Além disso, esse processo envolve não apenas adquirir conhecimentos, mas também aplicá-los; e, com isso, desenvolver melhor compreensão e gestão de emoções, além de habilidades sociais como empatia, tomada de decisões, planejamento e criação de relacionamentos saudáveis. Esse é o tipo de aprendizado que, apesar de claramente tão fundamental para nossa existência básica como seres humanos, muitas vezes não recebe tanta atenção – o que pode resultar em crianças e adultos desajustados e infelizes e, portanto, que foram falhados pela escola, já que seu desenvolvimento não foi completo. “A aprendizagem socioemocional vem tentar cumprir uma lacuna em algumas instituições escolares que se davam ausentes, e essa formação na verdade é para a humanidade” clarifica Danila.
Como parte fundamental da sociedade, a educação acompanha o mundo e se adapta junto a ele – por exemplo, quando percebemos que o sistema de educação tradicional – mecanicista, focado na memória e se preocupando unicamente com o desenvolvimento intelectual – já não era adequado para as nossas necessidades, as escolas precisaram se ajustar. Afinal, aponta Danila, o que realmente marca as crianças depois de uma aula não são as equações e fórmulas que decoraram, mas as relações que viveram naquele ambiente. O ser humano é um animal gregário, ou seja, não vivemos isoladamente mas em sociedade; nós precisamos de outras pessoas não só para atividades práticas mas também emocionalmente.
De acordo com a especialista em gestão escolar, a virada do século foi pontuada, no sentido da educação, pelo relatório de Jacques Delors, da Unesco, que introduziu uma educação baseada em quatro pilares: além do conhecimento em si – ou seja, o saber – é preciso também saber fazer, saber ser e saber conviver. Além disso, considerando que descobertas da neurociência comprovaram que não há pensamento intelectual que não passe pelas “vibrações” das emoções e sentimentos, fica claro que nossos aspectos intelectuais e afetivos estão interligados; não são opostos, e sim partes de um mesmo todo que se completam. “Para nós é bastante inconcebível entender qualquer tipo dessas competências como sendo não cognitivas, porque existe um diálogo dinâmico entre a cognição e a afetividade” conta Danila. “Isso não se separa, não são inteligências separadas, mas são essas várias dimensões em pleno movimento”.
Danila afirma que a nova BNCC presta atenção ao aspecto socioemocional ao mostrar a educação não apenas como um meio para passar no vestibular ou conseguir um bom emprego, mas como algo maior e além disso: uma ferramenta responsável pelo desenvolvimento global da humanidade, fazendo seu trabalho com cada cidadão criado. Esse processo, em um mundo cada vez mais globalizado, não é linear, e deve ser compreendido em sua enorme e complexa pluralidade – onde cada indivíduo é único. Danila considera essa ideia uma “democracia inclusiva” (onde deve haver espaço para todos), acompanhada, é claro, de alguns valores de convivência.
Por isso, a educação integral – preocupada com o subjetivo, inclusiva das expressões artísticas, da ética e do meio ambiente – para ser compreendida em sua totalidade deve ser contemplada na perspectiva moral: assim ficará claro quais são os princípios mínimos dos quais não podemos abrir mão nesse novo sistema para garantir uma experiência positiva. “A ética é uma reflexão dessa vida que quero viver, ela é uma reflexão dessa moral que vem dizer dos costumes, daqueles que não posso abrir mão para garantir uma convivência respeitosa”, desenvolve Danila.
É importante notar que isso tudo deve acontecer, idealmente, dentro de uma situação de autonomia moral, sem a banal relação de ordem e obedecimento, mas centrada em princípios que vão de encontro com os direitos humanos. “Nós queremos uma personalidade ética, uma pessoa que tenha no eixo da sua personalidade valores que vão guiá-lo para que considere tanto as suas necessidades, mas em comunhão com as necessidades do outro”, diz Danila. Como afirma Paul Ricoeur, só vivemos, realmente, uma vida boa se ela é realizada com uma perspectiva de justiça social; isso porque para que vivamos dignamente, é necessário que estejamos em uma sociedade justa.
Pensando justamente na necessidade de consciência social e busca por justiça, fica claro um dos problemas em relação ao modo como a educação socioemocional ainda é tratada: em grande partes dos casos, ela é vista apenas como um modo de criar crianças “boazinhas”, obedientes, que não apresentem nenhuma indisciplina. Enquanto essa pode, às vezes, ser uma das consequências, não deve ser o foco da tarefa e não prova, por si só, que um trabalho ético está sendo realizado. Essa visão da educação é extremamente reducionista, diz Daniela, que avisa: “para que tenhamos realmente uma educação integral emancipatória eu preciso pensar para além da socialização, eu preciso pensar em uma formação humana que vai expressar indignação diante de situações de opressão e violência”.
Sabendo do que se trata a educação socioemocional e sua importância, fica a pergunta: como a nova BNCC trabalha, na prática, com esses elementos? Colocando o assunto no holofote, a BNCC nomeia algumas competências socioemocionais necessárias para a vida em sociedade que precisam ser desenvolvidas desde cedo. Danila explica que a ideia de “competência” em si implica em uma ideia ou treinamento que é colocado em ação, e se trata de um “tipo de conhecimento que é mobilizado e flexível”; isso porque esse tipo de aprendizado é transmitido de diversos modos e de forma crítica para que possa ser aplicado em diferentes situações. “Aprender uma competência não pode ser entendido, muito menos ensinado, proporcionado como se fosse uma receita pronta, porque se eu entrego uma receita pronta, isso significa que não permite nenhum tipo de alteração e a competência em si ela pode ser modificada a depender da situação que se apresenta”, diz. “E o que nós sabemos quando falamos de relações interpessoais, os locais onde podem passar essas dimensões socioemocionais raramente as situações se dão em forma de receita, pelo contrário, elas são em geral singulares entre si”.
Essa complexidade da vida e da sociedade, refletida em nossas necessidades de competências socioemocionais, exigem muito diálogo e autoconhecimento. É claro que habilidades que trazem “sucesso” são desejadas por todos, mas mais importante é refletir sobre o mundo ao nosso redor para entender por que e como estamos nas situações em que estamos. Como cobrar que alguém seja resiliente, por exemplo, quando seu mundo está desabando à sua volta? Se alguém não consegue exercer resiliência, isso não significa necessariamente que essa pessoa seja incapaz dessa qualidade; nenhum de nós vive em um vácuo, e nossos contextos, portanto, fazem toda a diferença.
“O que é necessário é fazermos uma reflexão desse contexto, ‘como que eu vou desenvolver resiliência sendo que a pessoa não tem o que comer?’, ‘como que nós desenvolvemos resiliência quando estamos vendo as pessoas morrerem nos corredores do hospital por falta de equipamentos para a respiração?’, por exemplo, foi um caso que tivemos no nosso país recentemente”, provoca Danila. “Então, essa ideia de que quando ensino competências basta o sujeito dar conta daquela situação, ela é extremamente danosa, ou mesmo quando se usa o trabalho com as competências para rotular as pessoas, isso é algo que precisamos evitar”.
Para que um indivíduo desenvolva uma competência, é necessário que todo o seu entorno colabore para esse ensinamento. Esse é o ponto da instituição de educação – fornecer um ambiente seguro onde o aluno seja guiado e ajudado a atingir seus objetivos. É assim que a escola pode cultivar, inclusive, suas próprias competências coletivas.
A nova BNCC menciona algumas competências socioemocionais gerais a serem tratadas na educação, sendo que, como lembra Danila, cada uma delas se sustenta individualmente como seu próprio “universo” e colabora para uma convivência ética:
- A necessidade de utilizarmos os conhecimentos que já existem na sociedade para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
- A necessidade dos aportes intelectuais para essa construção; afinal, apesar da dimensão intelectual não ser suficiente, sozinha, de compor a um sujeito moralmente, ela é necessária para o desenvolvimento moral. Sem ela, seria quase impossível pensar em reciprocidade, pensar por causa ou consequência ou prever situações.”Eu preciso desse tipo de pensamento lógico para, inclusive, ter relações mais éticas” aponta Danila.
- A necessidade, para uma democracia inclusiva, de uma linguagem artística e da valorização da diversidade. É essencial ter a consciência de mundo para perceber não apenas o seu entorno imediato, mas a vastidão além do que nossos olhos vêem. Por isso, é preciso incentivar que indivíduos conheçam novas culturas e novas linguagens artísticas, criando seu próprio repertório. Ideias, sentimentos, pensamentos podem ser expressados – e entendidos – de inúmeras maneiras.
- A necessidade de uma comunicação reflexiva além de eficaz em sentido, ou seja, uma interação que olhe para as pessoas e situações de forma ética e crítica para resolver problemas. Essa competência envolve o exercício da cidadania, de nossa tarefa de criar nosso plano de vida considerando, também, um projeto de sociedade. “Porque nunca se esqueçam, nós somos seres gregários, nós vivemos em bandos, vivemos em sociedade, então, não dá para tirarmos a dimensão do outro dos nossos planos mesmo quando existe uma vontade muito grande, um cansaço muito grande às vezes de atitudes humanas que nos cercam”, lembra Danila. “Então, é sabermos trabalhar também com os aportes científicos, quais são os fatos, os dados que eu tenho informações para que possamos fazer a construção dessa sociedade?”.
- O autoconhecimento e autorrespeito; isso envolve entender suas próprias emoções e sentimentos e ter a força para resistir a ser colocado em situações de opressão e violência.
- Quando isso é compreendido, somos capazes de refletir sobre como aquilo deve funcionar para outras pessoas, já que assim como nós, elas são humanas. Temos então a possibilidade de exercer a empatia, o diálogo e a compaixão – de estender nossa humanidade ao outro sem preconceito.
- A educação como ferramenta para construção da autonomia. Devemos saber agir, individualmente e coletivamente, com autonomia, ou seja, não com individualismo, mas com autoconhecimento e controle, compreendendo regras; significa agir “independente dessas opressões, mas com responsabilidade, considerando o meu autocuidado e o cuidado com o outro nas minhas decisões”. Só é possível agir dessa forma se temos princípios éticos e solidários que sejam a favor de uma democracia inclusiva.
Sendo que competências como essas precisam estar incluídas em todos os componentes curriculares, como as escolas podem colocar seus ensinamentos em prática? A busca por programas socioemocionais que supram essa necessidade tem sido grande entre instituições de ensino, conta Danila, já que muitos dos profissionais não tiveram esse tipo de trabalho em sua própria formação. “É importante que nós justamente voltemos ao estudo, para as nossas bases teóricas para que possamos compreender como que faço esse trabalho na escola sem ser baseado no senso comum, como que consigo avaliar se o programa que me está sendo ofertado aqui de fato vai promover educação integral”, diz.
Como a necessidade de lidar com o socioemocional ficando mais clara com cada geração, esse tópico precisa ser assumido como prioridade pelas escolas para que aconteça algum avanço. Além de estudo por parte dos educadores, isso também envolve ações de promoção, intervenção e de acompanhamento. Danila encoraja o questionamento franco sobre recursos oferecidos: eles realmente ajudam no trabalho socioemocional? Eles ajudam a escola de uma perspectiva ética e moral? E, se sim, quais têm os melhores resultados?
Para responder essas perguntas, Danila fez um levantamento de 18 anos de produção científica em artigos; fechando com 169 artigos, a pesquisa incluiu programas dentro da grade horária obrigatória, voltados para a educação básica. Danila conta que, em geral, os resultados com esse tipo de programa foram positivos, mesmo que em diferentes escalas. Além disso, a pesquisa mostrou o quão diferentes os programas são entre si: enquanto alguns se propõem a trabalhar todos os dias da semana com uma quantidade grande de competências, outros apresentam menor frequência e foco em menos tópicos. A pluralidade no meio desses recursos é grande, e Danila dá a dica: “quando vocês precisarem escolher algum programa ou de que maneira vocês vão trabalhar na escola e de repente existe alguma proposta pronta, é preciso mergulhar nela para entender exatamente o que está sendo proposto, porque não é a mesma coisa, é diferente de quando nós adquirimos, por exemplo, uma apostila de matemática”.
A pesquisa também levantou uma preocupação para os educadores que estudam o assunto: “a grande maioria desses programas analisados não demonstraram as perspectivas teóricas onde esses programas são baseados”, relata Danila. Isso significa que apesar dos programas apresentarem frameworks das competências a serem trabalhadas, a maioria não explica em qual teoria se baseia – o que é um problema, porque sem reconhecer uma teoria não é possível identificar a visão do mundo da proposta. Assim, é muito possível que uma escola contrate um programa sem saber que seus valores e visões vão na direção oposta às do serviço. Para evitar isso, Danila sugere que as instituições e educadores estudem amplamente sobre o assunto antes de tomar uma decisão.
Entre várias conclusões tiradas da pesquisa de Danila, ela também chama atenção ao fato de que muitos desses serviços são melhor categorizados como “materiais” do que programas; isso porque um programa deve envolver uma escola inteira e seus integrantes em prol de uma visão e uma teoria educacional. Existe um déficit muito grande em relação a esse assunto quando o desenvolvimento socioemocional é focado unicamente nas crianças e não é visto como prioridade para o resto da equipe escolar.
Muitas vezes, o treinamento realizado com os educadores é a respeito do uso do material em vez de um aperfeiçoamento profissional que possa, de fato, ajudar os profissionais a lidar na prática com os estudantes. “Isso também deixa para nós uma preocupação muito grande, porque treinamento não é formação” diz Danila. “Nós precisamos ajudá-los a pensar fora da caixa, porque raramente dentro da sua classe irá acontecer exatamente como sua apostila diz, e na pauta das relações interpessoais isso é praticamente regra”. Além disso, apesar desse tipo de material ter o potencial de ser um ponto de começo para a melhora das boas relações, é preciso muito mais para resolver problemas de relações interpessoais. Uma situação de bullying na escola, por exemplo, é muito complexa e exige intervenção específica além de estudo.
Felizmente, existem estudos que nos ajudam a entender o que faz de um programa escolar socioemocional bom; Danila conta que devemos prestar atenção a quatro características básicas que atendem pela sigla de SAFE:
- SEQUENCIAL: O programa deve ser sequenciado, ou seja, uma única palestra sobre emoções não é suficiente; o trabalho deve ser contínuo.
- ATIVO: O programa deve envolver métodos ativos – os alunos não devem aprender não apenas verbalmente, mas na prática: em vez de presenciar uma “aula sobre empatia”, eles devem ter a oportunidade de vivenciar as experiências e emoções.
- FOCADO: A escola precisa dedicar tempo e espaço para o desenvolvimento socioemocional, priorizando essa área tanto quanto quaisquer outras disciplinas. Deve haver momentos específicos de aprendizagem socioemocional, e o assunto deve ser encarado como objeto de conhecimento.
- EXPLÍCITO: O desenvolvimento socioemocional, sua importância e objetivos devem estar explícitos e bem comunicados.
É claro que existem outros aspectos importantes para o funcionamento de um programa socioemocional em escolas, como o envolvimento da equipe inteira e das famílias dos alunos, expandindo essas competências tão importantes além dos muros do colégio. “Estamos falando de formação humana e formação humana interessa para todo mundo que é gente, então, se você é uma pessoa, você será beneficiado desse desenvolvimento socioemocional” afirma Danila.
O modo como educadores lidam com alunos reflete de forma significativa nas relações interpessoais desses indivíduos, então é muito importante que se crie uma cultura de educação saudável – hoje, sabemos que é muito mais benéfico tratar situações como oportunidades de aprendizagem com empatia do que utilizar o tradicional modo “eu mando e você obedece”. Afinal, com esse último método, é muito comum que as lições não permaneçam, já que quando a figura de autoridade eventualmente desaparece, a criança volta ao seu comportamento negativo.
Programas voltados a esse assunto devem prestar atenção e atender de acordo com a realidade de cada local, diz Danila; afinal, cada escola é diferente e nem todo programa será adequado para toda instituição. Por fim, outro ponto essencial é lembrar que um programa socioemocional jamais deve expor as pessoas da escola – é necessário saber e estabelecer limites para realizar um trabalho seguro.
Em um mundo que se torna cada vez mais prático, uma educação humanizada que valorize o desenvolvimento socioemocional é uma necessidade e um dever de todos nós. As consequências desse cuidado – ou falta dele – se apresentarão não apenas nas relações interpessoais dentro da escola, mas no mundo como um todo conforme novas gerações surgirem.
Assista a palestra completa:
Quais as contribuições da BNCC para a educação socioemocional?