Por Ana Carolina Leal
Nos dois primeiros meses de aula deste ano, foram registrados 4.021 casos de agressões físicas nas escolas estaduais paulistas. Os dados são da Secretaria da Educação de São Paulo e revelam um aumento de 48,5% a mais do que no mesmo período de 2019.
Essa escalada da violência tem preocupado pais e educadores. E apesar de não tratarem de casos isolados, por não saberem das peculiaridades de cada um deles, especialistas em educação apontam que a Comunicação Não-Violenta (CNV) pode contribuir para a resolução de conflitos de maneira pacífica e para a criação de um ambiente escolar mais saudável e acolhedor.
O conceito da CNV foi desenvolvido na década de 1960 pelo psicólogo norte-americano Marshall B. Rosenberg (1934-2015), autor do livro Comunicação Não-Violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Na publicação, ele afirma que a CNV ajuda as pessoas a reformularem a maneira pela qual se expressam e ouvem os outros.
“Somos levados a nos expressar com honestidade e clareza, ao mesmo tempo que damos aos outros uma atenção respeitosa e empática. Em toda troca, acabamos escutando nossas necessidades mais profundas e as dos outros”, explica no livro. Segundo o autor, por trás de todo comportamento existe um sentimento e uma necessidade, os quais devem ser observados, sem julgamentos.
Para a psicanalista e escritora Elisama Santos, especialista em educação não violenta, “A Comunicação Não-Violenta é uma nova forma de se comunicar consigo mesmo e com o outro. Alguns a definem como um método, mas eu acredito que é algo muito mais profundo. Nela, nós nos conectamos com a nossa humanidade, nossos sentimentos e necessidades, para depois nos conectarmos com o outro, fazendo florescer a nossa compaixão natural”.
Quatro componentes para praticar a Comunicação Não-Violenta
Em seu livro Como se relacionar bem usando comunicação não violenta, o advogado Thomas D’Ansembourg faz uma síntese do objetivo da CNV: “Depende apenas de nós trocarmos palavras que ferem, opõem, separam, julgam ou condenam por termos que unem, propõem, reconciliam e estimulam. Assim, precisamos trabalhar nossa consciência e nossa linguagem, para livrá-las do que interfere na comunicação e nos leva a agir de maneira agressiva e violenta no dia a dia”.
Para que a Comunicação Não-Violenta ocorra, Rosenberg explica que os praticantes devem se concentrar em quatro componentes, que devem ser expressados de forma clara:
- Observação
Em primeiro lugar, é necessário observar o que realmente está acontecendo em determinada situação. A dificuldade da maioria das pessoas é fazer essa observação sem criar um juízo de valor.
- Sentimento
Depois, é preciso entender qual sentimento a situação desperta depois da observação. É importante nomear o que se sente e se permitir ser vulnerável para resolver conflitos, sabendo a diferença entre o que se sente e o que se pensa ou interpreta.
- Necessidades
A partir da compreensão de qual sentimento foi despertado, é preciso reconhecer quais necessidades estão ligadas a ele. Para Rosenberg existe uma possibilidade maior das necessidades do interlocutor serem atendidas se ele souber expressá-las claramente.
- Pedido
Por meio de uma solicitação específica, ligada a ações concretas, é possível deixar claro o que se quer da outra pessoa. O autor recomenda a utilização de linguagem positiva, em forma de afirmação, para fazer o pedido.
Instituições de ensino devem fazer autoanálise, sugere especialista
Para a palestrante e consultora em educação Aline Basso, antes de colocar em prática a CNV, as instituições de ensino devem fazer uma autoanálise, identificando se esse ambiente estimula a cooperação e o trabalho em equipe. “Se não for assim, se for um ambiente com muita hostilidade, muita punição e repressão, a CNV não vai funcionar”, afirma.
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Segundo ela, pais e escolas devem identificar se pautam suas ações pelo paradigma da colaboração e da empatia ou da competição. “Isso é muito nítido nas escolas onde tem o melhor aluno, o que tira dez, o que se comporta. Se você está competindo com pessoas pelo primeiro lugar, pelo elogio, logo os demais são seus opositores, aí começam os conflitos”, diz.
A consultora em educação também explica os quatro passos simples que qualquer pessoa pode aplicar no dia a dia, visando a praticar uma comunicação não-violenta.
- observar o fato sem nenhum julgamento; Exemplo: Professor entrou na sala e alunos continuaram conversando. No modo automático, ele julga os estudantes como desinteressados, desatentos, preguiçosos e mal-educados.
- identificar a necessidade que não foi atendida; Exemplo: O professor precisa se sentir ouvido e valorizado.
- investigar quais as emoções presentes nessa situação; exemplo: Profissional pode se sentir triste, frustrado e irritado, o que pode levá-lo, de forma equivocada, a gritar ou a punir a sala.
- já consciente do que precisa e com as emoções reguladas, falar de forma clara, sem julgamentos, sobre as próprias necessidades. Exemplo: Em vez de esbravejar, explicar claramente que gosta de se sentir ouvido e valorizado, por isso é importante que os alunos façam silêncio. Sugerir formas de interação entre a sala, como levantar a mão para pedir uso da palavra.
Aline Basso também exemplifica um desentendimento simples entre alunos e como ele pode ser resolvido entre os próprios estudantes, mas ressalta que é importante que as escolas e famílias trabalhem a questão emocional das crianças e dos adolescentes, para que eles consigam identificar, desde cedo, as próprias necessidades e quais sentimentos elas despertam. “Não adianta aplicar a CNV na escola, se a instituição não tiver a cultura de trabalhar as emoções. Depois que compreendo minha emoção, muito provavelmente consigo me acalmar”, explica.
A profissional cita mais uma situação hipotética como exemplo. O aluno pede um lápis emprestado ao colega, que nega. No modo automático, o estudante julga que o colega não gosta dele, nunca lhe empresta nada, ao mesmo tempo que sempre cede o lápis a outro.
O aluno que não conseguiu o lápis emprestado pode sentir raiva, ciúme, vontade de chorar, de bater ou de xingar o colega.
Já consciente do que precisa e com as emoções reguladas, o aluno pode dizer: “Quando peço o lápis emprestado e você diz não, sinto que você não quer ser meu amigo. Você poderia me explicar a razão de não emprestar o lápis? Quer fazer uma troca?”
A consultora em educação ressalta, ainda, que ao abrir espaço para o diálogo, esses estudantes envolvidos na comunicação podem apresentar sugestões construtivas, com o intuito de solucionar o problema.
Primeira mudança em sala de aula deve ser do professor
Para a educadora parental Joana Simielli, a primeira mudança para a implantação da CNV dentro da sala de aula deve partir do próprio professor. “Quando o educador muda a forma de falar, não rotulando os comportamentos, incentivando a busca por soluções coletivamente, escutando os alunos com empatia e atenção, acaba por incentivar que eles façam o mesmo com ele e com os demais colegas”, explica.
Especialista em psicologia clínica, com aprimoramento em Ludoterapia e em Educação Parental, Joana também aponta que, além de trazer benefícios aos estudantes, a CNV auxilia na comunicação interna na escola e, como consequência, reflete na comunicação entre pais, mães e filhos. “Ambientes em que a conversa é estimulada e nutrida tendem a ser mais pacíficos e equilibrados. Estabelecer uma linguagem mais conectada com nossa humanidade e a do outro transforma as relações e ambientes e certamente reverbera nas relações com todos ao nosso redor, inclusive do aluno com seu pai”, afirma.
A professora e educadora parental Flávia Pereira, adepta da disciplina positiva, em sua página no instagram @pais.ajudam.pais, afirma que “Toda violência é uma expressão trágica de uma necessidade não atendida. Quando mudamos nosso olhar para a criança, tudo muda”. Segundo ela, as crianças são espelho do meio que vivem e resultado de suas relações. “A criança tem direito a uma escola centrada nas necessidades dela, mas a maioria é centrada nas necessidades do adulto”, afirma.
A educadora também destaca que a punição aumenta a agressividade, uma vez que a educação tradicional está focada apenas em limitar e controlar a criança, em vez de ensinar habilidades socioemocionais.
Ela também ressalta que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal, em seu artigo 227, asseguram o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante. “Punição e castigo são a mesma coisa, ambos não ensinam nada e geram estresse tóxico precoce, o que dificulta o desenvolvimento cerebral, cognitivo e comportamental”, explica.
Para Elisama Santos, a CNV contribui para que alunos e educadores conectem-se com os próprios sentimentos antes de comunicá-los de forma objetiva e respeitosa. Esse tipo de comunicação, pode servir de alternativa à cultura autoritária que justifica o uso da violência e da repressão como método educativo, o que seria um dos caminhos para uma educação mais solidária e compreensiva, possibilitando a formação de adultos mais amorosos e conscientes.
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*Matéria atualizada em 29/04/2022, às 10:26am