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Um estudo realizado por pesquisadores da USP e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) investigou a relação entre o desempenho de estudantes inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2019 e suas características pessoais, como raça, etnia, sexo, idade, renda, escolaridade dos pais, tipo de escola e região geográfica.

Consultando uma base de dados de mais de 757 mil questionários socioeconômicos, o estudo constatou que quanto maior a renda familiar, melhor o desempenho do estudante. Os dados também indicaram que estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas tiveram as menores notas médias no Enem.

Os resultados da análise ainda serão publicados na Revista Educação e Pesquisa, da Faculdade de Educação (FE) da USP, e serão apresentados no auditório da FE no próximo dia 19, das 14 às 17 horas. A apresentação será realizada pelos autores do estudo: o professor sênior do Instituto de Física (IF) da USP, Otaviano Helene, e a também física e professora da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Unifesp, Elisa Thomé Sena. A coordenação do evento é da professora Sonia Kruppa. 

Entre os dados de destaque, o estudo constata que pessoas brancas, com renda domiciliar de R$ 5 mil por indivíduo, que tenham frequentado escolas privadas no ensino médio e cujos pais têm ensino superior completo, alcançam nota média da ordem de 130 a 140 pontos a mais do que pessoas negras, com renda de R$ 1 mil por pessoa, que tenham estudado em escolas estaduais e cujos pais têm apenas o ensino fundamental.

Infografia compara desempenho de estudantes no Enem
Pessoas brancas, com renda domiciliar de R$ 5 mil por indivíduo, que tenham frequentado escolas privadas no ensino médio e cujos pais têm ensino superior completo, alcançam nota média da ordem de 130 a 140 pontos a mais do que pessoas negras, com renda de R$ 1 mil por pessoa, que tenham estudado em escolas estaduais e cujos pais têm apenas o ensino fundamental – Jornal da USP

“Tal diferença, em uma prova cujas notas médias estão próximas a 600 pontos, praticamente anula a chance de sucesso de alguém desse segundo grupo na disputa por uma carreira minimamente concorrida”, afirmam os organizadores do estudo. 

A análise demonstra que um aumento de R$ 500 nos domicílios com menor renda (R$ 2 mil)  tem um impacto positivo, elevando de 15 a 20 pontos na nota final do exame. Já o mesmo aumento nas maiores faixas de renda domiciliar (R$ 10 mil) não chega a implicar nem um ponto porcentual na nota final.  

“Esse é um fator óbvio da discriminação. 20 pontos não é pouco, porque quando você põe um corte de 700 pontos, que é uma nota relativa aos cursos de alta competição, você praticamente exclui a totalidade dos alunos das escolas de ensino médio público. Então, é um processo quase que exclusivamente reservado ao pessoal de ensino privado e das escolas de elite, inclusive”, afirma Helene. 

Além disso, para cada ano adicional na idade dos candidatos, após os 17 anos, a nota do Enem cai 15 pontos na média em matemática, e 33 pontos em redação. Ao Jornal da USP, o professor do IF reforça que essas correlações não são, necessariamente, de causa e efeito. “São fatores que estão relacionados, mas é necessário investigar se são consequências de uma terceira causa, por exemplo.” 

Gráfico de barras mostra nota no ENEM 2019 segundo o vínculo administrativo da escola
Nota no ENEM 2019 segundo o vínculo administrativo da escola. As piores notas são observadas nas escolas públicas estaduais – Gráficos cedidos pelos pesquisadores
Nota média no ENEM 2019 por raça e cor. As maiores diferenças foram entre notas de brancos e indígenas, de cerca de 25 pontos na média – Gráfico cedido pelos pesquisadores

Análise estatística

Entre os estudantes cujos pais completaram o ensino médio, a nota média no Enem atingiu 500 pontos. Filhos de pais que completaram a pós-graduação chegaram a 600 pontos na nota média. Em todos os casos, a maior escolaridade do pai tem maior impacto na pontuação geral do que a escolaridade da mãe.

Com relação ao gênero, o levantamento identificou que homens vão melhor em quase todas as categorias exigidas na prova – ciências naturais, ciências humanas e matemática; homens e mulheres empatam em linguagem, mas as mulheres têm melhor desempenho na redação.

Das 27 unidades federativas do Brasil – 26 Estados e o Distrito Federal -, as maiores notas ficaram concentradas entre o Sul e o Sudeste, que tiveram nota média de 530 a 540 pontos. No Nordeste e no Centro-Oeste, a nota média variou entre 510 e 520 pontos, e no Norte do Brasil a pontuação alcançou os piores resultados, chegando a 490 no Amazonas. 

Em todo o Brasil, a média das maiores notas do Enem de 2019 veio das escolas privadas, seguidas das federais, municipais e estaduais, respectivamente. Entretanto, ao considerar dois estudantes que têm a mesma idade, cor de pele, moram no mesmo estado, têm pais com a mesma escolaridade e a mesma renda familiar per capita, alunos de escolas públicas federais vão melhor do que os de escolas privadas.

“Quando pensamos na população geral de candidatos do Enem, sem termos isolado todos os fatores, provavelmente a condição melhor durante a vida influenciou para que tenham tido – em média – melhores notas no Enem. Mais do que o próprio fato de elas terem estudado em escolas particulares”, detalha Elisa.

O estudo utilizou um modelo matemático de regressão linear múltipla, baseado no método dos mínimos quadrados. Este modelo associa e descreve a relação entre duas ou mais variáveis independentes, neste caso, numéricas e categóricas, permitindo inferências a respeito de um conjunto de dados.

Mapa mostra desempenho de estudantes no ENEM 2019 por região do Brasil
Para as mesmas condições de renda, escolaridade dos pais e demais fatores analisados, as piores notas médias ficaram em Roraima, Mato Grosso, Amazonas, Amapá e Maranhão – Gráfico cedido pelos pesquisadores

Políticas públicas

“Eu acho que essa pesquisa é um primeiro passo para propor políticas públicas na área de educação. No futuro, outros estudos poderão ser feitos na mesma linha, visando incluir outros fatores que estão relacionados à nota no Enem. Contudo, mesmo essa análise estatística simples já consegue evidenciar como alguns aspectos provenientes da desigualdade social (e da própria formação histórica do Brasil) podem influenciar as notas dos candidatos a uma vaga em uma universidade”, afirma Elisa. Para a professora da Unifesp, a redução do que chamou de “abismo de oportunidades” começa com a valorização do profissional da educação.

“Eu acho importantíssimo que o aluno tenha acesso a bibliotecas (com livros, gibis e revistas de papel). Eu estudei em escola pública minha vida inteira e não tinha biblioteca na escola em que eu cursei o ensino fundamental. Laboratórios, então, nem sonhando”, relata. A professora também defende a ampliação do imaginário de estudantes por meio de leitura e passeios em museus, para amenizar as diferenças das experiências vividas por estudantes de diferentes classes sociais. 

Para Helene e Elisa, as análises apresentadas no estudo da relação entre o desempenho no Enem e indicadores socioeconômicos dos estudantes podem ser utilizadas como base para definir políticas públicas visando diminuir a desigualdade no acesso ao ensino superior.

O estudo também pode incrementar os dados exigidos pelo próprio governo federal, adicionando outras perguntas ao questionário do Enem, como, por exemplo, se o aluno estudou em escola técnica ou o bairro onde a escola está localizada.

“O modelo educacional brasileiro é mais do que excludente; ele está no limite do segregacionismo. Uma metade da população não conclui o ensino médio e a metade que conclui, o faz muito mal. Então, 3 ⁄ 4 da população são descartados de darem uma maior contribuição para a força de trabalho do País”, alerta Helene.