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Passar da instrução para a aprendizagem é o resumo da proposta que tornou a Escola da Ponte, em Portugal, uma experiência inovadora de educação pública. Fundada em 1976, a instituição de ensino busca dar protagonismo ao aluno e ao processo de aprendizado, que se torna, ao mesmo tempo, mais autônomo e mais coletivo.

A experiência da Escola da Ponte inspirou outras instituições de ensino ao redor do mundo, inclusive no Brasil, onde José Pacheco chegou a participar da criação do Projeto Âncora, fundado no interior de São Paulo, em 1995.

José Pacheco esteve na Eduko, em Belo Horizonte

Palestrante da primeira edição da Eduko, Bienal de novos saberes, em Belo Horizonte, o pedagogo português José Pacheco reflete sobre tecnologia, diversidade e a educação do futuro. O evento foi realizado por Sesc, Sistema Comércio MG e Senac.

“Os professores do futuro irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas em lousas digitais? Irão replicar o planejamento de aulas congeladas no YouTube ou em tablets? Ou usar o digital a serviço da humanização da escola? Essa é a pergunta central. Não sou catastrofista, vejo tudo com o copo meio cheio. Mas as escolas têm se enfeitado de novas tecnologias sem intensificar a comunicação e a pesquisa. Pelo contrário, o modo como utilizam a internet fomenta a imbecilidade, a ignorância e a solidão”, define.

Educador vê dificuldade em trabalho pautado na coletividade

Em entrevista à Agência Brasil, o idealizador da escola, o educador, antropólogo e cientista da Educação José Pacheco vê a educação pautada pela competição e individualidade como uma das causas de conflitos sociais, extremismo e violência nas escolas. E na sala de aula tradicional, defende, é impossível se pensar em um trabalho pautado na coletividade.

Agência Brasil: A sua concepção do que deveria ser a Escola da Ponte mudou ao longo do tempo? Como a prática cotidiana impactou suas ideias?

José Pacheco: A Escola da Ponte foi a primeira escola, no contexto da rede pública de educação, que operou a transição entre o paradigma da instrução, o trabalho centrado no professor, para o paradigma da aprendizagem, o trabalho centrado no aluno enquanto sujeito de aprendizagem. Foi a primeira no ensino fundamental, e, em 1976, foi inovadora, porque cumpriu os cinco critérios que definem inovação: ser efetivamente inédita, ser sustentável na lei e na ciência, ser replicável, ser útil e estar sempre em fase instituinte. A inovação é algo instituinte, não pode parar de inovar. E o que aconteceu na Escola Ponte é que parou de inovar. É a melhor escola do meu país, é uma das melhores escolas do mundo, no mundo da educação, claro, mas ela cristalizou. É um objeto de turismo educacional.

Agência Brasil: Você idealizou um projeto de educação pautado pela coletividade em um tempo em que o individualismo parece cada vez mais exacerbado. Que resposta a educação deve oferecer a esse movimento, na sua visão?

José Pacheco: Edgar Morin [antropólogo, sociólogo e filósofo francês] diz-nos que a modernidade nos confinou numa ética individualista que nos impede de pensar a responsabilidade por atos coletivos. E é isso que a escola da modernidade concretiza quando o professor está solitário na sala de aula e não é autônomo, e não ensina o que diz, transmite aquilo que é. Transmite heteronímia a uma audiência formal e o mesmo está sujeito a uma hierarquia explícita na sala de aula. É impossível pensar-se num trabalho pautado na coletividade. A sala de aula, como dispositivo central do paradigma da instrução, deverá ser extinta, pura e simplesmente, porque o que importa a saber é que alguns autores do século 20, e vou citar apenas dois ou três, Agostinho da Silva, Lauro de Oliveira Lima, Paulo Freire, que é incontornável. Mas um Freire que seja efetivamente cumprido, porque o que acontece hoje nas propostas, teorizações e teorias é algo que eu chamo de freirianos não praticantes. São teoricistas que falam de uma nova educação, falam em nome de Paulo Freire, mas fazem educação bancária, o que é contraditório, e até antiético, mas ficamos por aí. O que fazemos, a práxis, é criar os círculos de aprendizagem, o que é efetivamente uma inovação. E os círculos de aprendizagem dão origem a uma nova construção social, porque há várias. E essa nova construção são protótipos de uma comunidade de aprendizagem. Em vários países acompanho a evolução desse projeto de criação de uma nova construção social. Não é mais um paliativo, não é mais um ensino híbrido, nada disso. É uma nova construção social que irá ao longo dos anos substituir aquela que vem da Prússia militar do Século 18 e da Inglaterra da Primeira Revolução Industrial.

Agência Brasil: Acompanha experiências similares à sua no Brasil? Como vê a aplicabilidade desse método em realidades socioeconômicas diferentes de da cidade do Porto?

José Pacheco: Quando me foi pedido que fizesse o projeto âncora, tive o cuidado de entrar nas favelas que rodeavam esse projeto e vivenciar aquilo que lá acontecia. Partindo do princípio que escolas não são prédios, são pessoas, e as pessoas são os seus valores, eu encontrei nas favelas, se nos abstrairmos do tráfico e das milícias, a matriz axiológica da Escola da Ponte, os valores. O valor da solidariedade, da responsabilidade e da autonomia. É muito claro nos favelados essa tripla dimensão axiológica. E tive o cuidado também de, enquanto europeu, correndo risco de etnocentrismo, ir às comunidades dos povos indígenas. Estive um tempo entre os pataxós, outro tempo entre os tupinambás e outro tempo entre os xavantes. Depois, fui aos quilombos. Fui a um quilombo do Campinho. Fui a um quilombo em Goiás, estive em vários, e encontrei a tradução clara daquilo que é o provérbio africano de que é preciso uma tribo inteira para educar uma criança. Depois dessas experiências, costumo dizer que quanto mais eu conheço o Brasil menos entendo, mas isso se deve ao caldo cultural em que o Brasil está imerso. A origem portuguesa, japonesa, alemã, italiana e tantas outras de imigrantes que trouxeram toda a sua criatividade e é muito difícil pensar uma Escola da Ponte, mas é possível partir do exemplo da Escola da Ponte, para, aplicando com toda a reserva e cuidado à América do Sul, fazermos aquilo que há muito tempo este lugar reclama, que é uma escola, uma educação, na medida dos povos pré-colombianos, juntando cultura e miscigenação.

Impacto da tecnologia nas gerações atuais

Agência Brasil: Sua experiência na Escola da Ponte já atravessa diferentes gerações de crianças. Como tem acompanhado o impacto da tecnologia nas gerações atuais? Quais consequências vê e como lidar com elas?

José Pacheco: Quando, há 50 anos, perguntava aos alunos o que queriam ser, diziam que queriam ser jogadores de futebol, aeromoças etc. Quando hoje eu pergunto, primeiro eles respondem perguntando: eu posso dizer? Porque já destruíram a curiosidade e os proibiram de fazer perguntas. Eu digo que sim. E eles dizem que querem ser influencers, youtubers etc. E o que eu quero dizer com isso? As tecnologias de informação e comunicação são incontornáveis, mas a escola precisa ser reinventada. Não adotar robôs e uma inteligência artificial que, dos Estados Unidos, transmite conteúdo para o cérebro. Do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas em algumas escolas, temo que se converta em mais alguma panaceia. Que sejam acriticamente consumidas, sem resquícios de uma cooperação necessária e dependentes de vínculos afetivos precários que são estabelecidos com identidades virtuais. Internet não é uma ferramenta, é uma sociedade, e é generosa na oferta de informação, mas os professores do futuro irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas em lousas digitais? Irão replicar o planejamento de aulas congeladas no YouTube ou em tablets? Ou usar o digital a serviço da humanização da escola? Essa é a pergunta central. Não sou catastrofista, vejo tudo com o copo meio cheio. Mas as escolas têm se enfeitado de novas tecnologias sem intensificar a comunicação e a pesquisa. Pelo contrário, o modo como utilizam a internet fomenta a imbecilidade, a ignorância e a solidão.

Agência Brasil: Os ataques violentos a escolas têm crescido no Brasil, muitas vezes associados a grupos de ódio nas redes. Como sua proposta pedagógica pode contribuir para o enfrentamento desse problema?

José Pacheco: Na escola de Bambini, em 1907, Maria Montessori dizia que a escola que estimula a competitividade negativa é a origem remota de todos os conflitos de todas as guerras. Não espanta, infelizmente, os ataques que as escolas têm sofrido e as mortes que têm acontecido. Quando vou até uma escola que carece de um ambiente de sociocracia, de um ambiente democrático, a primeira coisa que fazemos é criar alguns dispositivos de relação, entre os quais os acordos de convivência, o quadro de direitos e deveres, a assembleia, a comissão de ajuda, a caixa de segredos. E essa organização, muito até neobehaviorista, que condiciona todo o trabalho feito a jusante. Um dia, me levaram à Papuda [presídio no Distrito Federal], à aula de jovens infratores, e nem consigo descrever a tragédia que lá observei. E o secretário de educação do Distrito Federal pediu para eu fazer um projeto para aqueles jovens, e eu disse que poderia tentar desde que conhecesse a origem desses jovens e estabelecesse contatos com as famílias, quase todas monoparentais, mas que estava mais interessado em preparar um projeto que evitasse a nossa sociedade de ver uma Papuda, de ver violência, ou seja, trabalhar a montante para não arranjar improvisos de solução a jusante.

Contribuições para inclusão e respeito à diversidade

Agência Brasil: A educação antirracista, pró-equidade de gênero e inclusiva a respeito das diversidades sexuais é uma pauta progressista com cada vez mais relevância. Quais contribuições a Escola da Ponte pode dar nesse sentido?

José Pacheco: Quando me perguntam se a minha escola é inclusiva, respondo que é uma escola a caminho da inclusão. Porque não há escolas inclusivas nem há escolas inovadoras. Há um tempo ouvi um discurso de uma muito conhecida palestrante que falava sobre escolas inclusivas e inovadoras, e, no final, com todo respeito, perguntei pelo endereço de uma dessas escolas e ela não soube dar. Estamos a falar de que? Enquanto a escola continuar a ser o que é, enquanto não se juntar aquilo que é útil no paradigma da instrução, no paradigma da aprendizagem e no paradigma da comunicação, enquanto não se tomar um compromisso ético com a escola e com a vida. Porque se o professor dá aula e não ensina a todos os alunos, e se continuar dando a aula, ele não é um professor, é um crápula, porque sabe que está a semear ignorância. Então, é preciso criar condições para que se cuide dos professores para que eles possam tomar uma decisão ética, um compromisso ético com a educação. A partir daí essas questões de gênero, de inclusão e de diversidade, tudo isso é sublimado.

Agência Brasil: Vemos uma certa desvalorização do ensino formal e das carreiras tradicionais nas redes sociais, que apontam para um modelo de sucesso capitalista agora mais pautado pelos influenciadores, coachs, investidores de cripto e outros grupos. Como isso impacta a educação de hoje e do futuro, na sua visão?

José Pacheco: Influenciadores, coachs, investidores etc. Tudo isso irá parar no saco de lixo da história da educação. São fenômenos de passagem. Falar da educação do futuro é falar de que?, se considerarmos que mais de 80% dos empregos atuais não existirão dentro de 10 anos. Penso que vai ser antes. Um dos quais é o professor de sala de aula. Quando fui dar aula, sabia muito da minha área, de eletrotécnica, não sabia ser professor, sabia dar aula. E não sabia que estava a desvalorizar a minha própria profissionalização. Todos esses coachs irão desaparecer assim como irá desaparecer a mercantilização da escola pública, que está em curso. As modas pedagógicas duram enquanto duram, então, não me preocupa muito a desvalorização do ensino formal, até porque não falo de ensino formal. Por que há ensino formal e informal, educação ambiental, educação para a saúde, educação infantil, educação fundamental? Educação é uma só.

Foto: Eduko/Divulgação.

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