Livro mapeia relação entre meios de comunicação e ensino básico
“Eu tenho ideias incríveis para aprimorar minhas aulas e conteúdos, advindas do contato com as mídias de comunicação e interação virtual, mas não consigo pô-las em prática devido à falta de tempo hábil.”
“Parece que vivo dentro de uma escola sem ter tempo para nada. A docência é maravilhosa, porém nos desgasta bastante, sinto não ter tempo para me reenergizar.”
“Pouco tempo para me dedicar à preparação das aulas, projetos e correções de provas. Chego a ficar sábado e domingo preparando aula, corrigindo atividades e avaliações.”
“Por que o uso das tecnologias de comunicação acarretou sobrecarga de trabalho do professor: tenho de produzir material ‘analógico’ e também ‘digital’ para alimentar o AVA (ambiente virtual de aprendizagem). Trabalho muito mais horas fora da sala de aula do que antes de a internet chegar na escola.”
Tais declarações, vindas de professores do ensino básico, são alguns dos achados sobre a relação entre meios de comunicação e ensino que aparecem em Comunicação e Educação: Dinâmicas Midiáticas e Cenários Escolares. Organizada pelo professor Adilson Citelli, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, a obra apresenta os resultados do projeto de pesquisa Inter-Relações Comunicação e Educação no Contexto do Ensino Básico”.
Realizada pelo grupo Mediações Educomunicativas (Mecom), presidido por Citelli, a pesquisa que gerou o livro procurou verificar como os discursos escolares dialogam com os meios de comunicação. Centrado nas escolas de ensino fundamental e médio, o projeto incluiu entrevistas com professores e estudantes e visitas às instituições educativas durante o segundo semestre de 2018. A maior parte do trabalho analítico aconteceu em 2019, mas o contexto da pandemia também aparece na obra.
A intenção do grupo foi mapear a existência de vínculos entre comunicação e educação nas escolas, identificando, além disso, os hábitos midiáticos de professores e estudantes, prestando atenção nos possíveis usos dos meios de comunicação no trabalho escolar. Participaram do projeto 509 professores e 3.708 estudantes de 23 Estados do País
Os pesquisadores acompanharam aulas, realizaram grupos de discussão, aplicaram questionários e fizeram entrevistas com docentes e discentes. O resultado dos trabalhos aparece distribuído no livro em 12 artigos, assinados por professores, doutores, mestres, pós-graduandos e graduandos ligados ao Mecom.
“Como tais tecnologias e os meios de comunicação se fazem presentes no cotidiano, inexistindo sinais de que haverá decréscimo ou arrefecimento, é necessário ter em mira ativar a capacidade analítico-crítica dos/das discentes (e mesmo de grupos docentes) no que se refere aos dispositivos comunicacionais. Nos termos da Unesco: trata-se de promover a referida educação midiática”, escrevem os autores na introdução da obra.
Professores e estudantes conectados
Os dados coletados e analisados pelos pesquisadores revelam o quadro da relação entre educação e comunicação. Em relação aos professores, 80% dos entrevistados usam o smartphone como principal meio de acesso à internet, enquanto 89% disseram acessar a rede de computadores para preparar aulas. 91% dos entrevistados afirmaram usar o computador para atividades didáticas e 93% entendem que a relação entre mídias e escola é complementar.
A maioria costuma compartilhar com os estudantes conteúdos como informações sobre sua disciplina, notícias e vídeos. Por fim, 56% dos professores utilizam sempre ou quase sempre como recurso didático algum tipo de conteúdo como música, videoclipe, novela, série, filme, propaganda, telejornal, jornal ou revista.
Como a finalização do livro foi parcialmente realizada já no contexto da pandemia, alguns apontamentos sobre as aulas remotas também foram apresentados. “A ideia de que os educadores e educadoras foram beneficiados ao ministrarem as disciplinas de suas próprias casas não se sustenta, uma vez que, afora a tensão gerada pela ameaça da doença e a trágica evolução do número de casos e mortes, eles/as são obrigados/as a lidar com os desgastes físicos e emocionais, efeitos de experiências atípicas, como o distanciamento social e as saídas involuntárias para ‘gravar aulas’, sob precauções rígidas para evitar a contaminação”, apontam Sandra Pereira Falcão e Rogério Pelizzari de Andrade em um dos artigos.
A dupla destaca também que as antigas pressões sobre os professores – a realização de cursos e capacitações para progressão na carreira e reinvenções de práticas pedagógicas para manter o controle e a atenção dos estudantes – são reforçadas pela centralidade dos dispositivos tecnológicos. “Iniciativas apresentadas ao longo do período de quarentena, apoiadas no uso de linguagens amplamente disseminadas entre estudantes, como o TikTok”, escrevem os pesquisadores, “conquanto representem alternativas válidas de mediação do processo ensino-aprendizagem, acabam por reforçar a carga já intensa de expectativas a recair sobre os/as professores/as, os quais se sentem pressionados/as a incorporar à prática docente atividades típicas de um influenciador digital.”
De acordo com o professor Citelli, conforme escreve em outro artigo do livro, no qual investiga a falta de tempo e a sensação de sobrecarga dos professores, estes se situam hoje no interior de um processo de mudanças sociotécnicas que repercutem diretamente em seu trabalho. “Em boa monta, os professores e professoras possuem idade e tempo de exercício do magistério consentâneos à ampliação dos dispositivos comunicacionais, particularmente em anos recentes ancorados nas tecnologias digitais.”
“Tal esclarecimento promove compreensível aproximação entre docentes e discentes, haja vista circularem em universo comum atravessado pelos inúmeros aparatos técnicos, midiáticos, e suas variadas implicações. Isso não significa, entretanto, existir maior ajuste de passo entre os andamentos das aulas em seus modelos atuais e os reptos pedidos a uma educação que tem à sua frente incitamentos da comunicação mediada”.
Quanto aos estudantes, os resultados da pesquisa reforçaram a percepção da relação estreita entre os jovens e as mídias digitais. O smartphone aparece como o meio mais utilizado para acessar a internet para 86% dos entrevistados, seguido de longe pelos notebooks (32%) e desktops (23%). Os conteúdos mais procurados por eles são vídeos (81%), redes sociais (76%), sites de busca (56%) e jogos (52%).
“Observamos que a oferta de uma miríade de recursos visuais e sonoros, assim como a possibilidade de entrar em contato com outras pessoas e de não apenas consumir, mas também de produzir conteúdo, em qualquer lugar e a qualquer hora, acabam por reduzir o espaço e o tempo da educação formal”, escrevem Sandra e Andrade. “A concorrência de produtos considerados mais atraentes, em geral voltados ao entretenimento, relega a segundo plano as atividades associadas às relações ensino-aprendizagem nas salas de aula — é preciso considerar que o estudo das matérias, a preparação para as provas, a realização dos trabalhos e deveres escolares são atravessados e, no limite, preteridos por experiências recortadas pelos media.”
Vozes cruzadas
Ao cruzar os dados obtidos com os professores e os estudantes, a pesquisa pôde encontrar alguns entendimentos e propostas comuns aos dois grupos no que tange à relação entre comunicação e educação. Tanto professores quanto estudantes reconhecem nos dispositivos técnicos e nos conteúdos midiáticos uma forma de tornar as aulas mais dinâmicas, diferenciadas e estimulantes. “Os dois grupos apontam principalmente para a relação intrínseca dos/as jovens com os meios e para a interação que estes podem proporcionar entre estudantes e docentes e entre o espaço educativo e o que acontece fora dele”, escrevem Eliana Nagamini, Maria do Carmo Souza de Almeida e Tatiana Luz-Carvalho.
As pesquisadoras frisam, entretanto, que alguns estudantes e professores percebem que os recursos midiáticos podem não ser eficientes caso não funcionem de maneira adequado ou se os docentes não souberem usá-los corretamente. “Cabe ressaltar, portanto, que apenas a presença dos recursos na sala de aula não garante a melhoria nos fazeres pedagógicos”, escreve o trio. “Para isso, é essencial o/a docente deter conhecimentos sobre o funcionamento dos suportes tecnológicos, bem como as especificidades de suas linguagens.”
Sobre o celular, o dispositivo mais presente tanto entre docentes quanto discentes, as pesquisadoras apontam que a orientação do professor é decisiva para a utilização do aparelho como recurso pedagógico. “Porém”, afirmam, “enquanto os/as docentes reconhecem esse potencial no contexto restrito da ação pedagógica, os/as discentes indicam-no como auxiliar na comunicação para além dos muros da escola. Ou seja, para o ethos docente, o celular deve limitar-se às atividades didáticas; já o ethos discente torna mais abrangente o alcance do aparelho.”
As pesquisadoras ainda pontuam a dupla percepção do tempo que esse processo imprime na dinâmica das aulas. Para os professores, há uma corrida para aprender e compreender o alcance das opções tecnológicas, um movimento que cria a percepção da inexistência de tempo para formação adequada. Já para os estudantes, as mídias fazem a aula dinâmica, tornando o tempo também rápido para eles, mas vinculado não à pressão, mas ao prazer.
Tecnologias como mediadoras da aprendizagem
Com um vasto conjunto de dados quantitativos e qualitativos, o volume tem entre seus méritos colocar como ponto de partida para se pensar a relação entre comunicação e educação as vozes de professores e estudantes. Disso decorre que em suas páginas não surgem propostas acabadas, mas as percepções de quem está diariamente na linha de frente do processo, vivendo a realidade da entrada das tecnologias na escola e a urgência de se pensar o que fazer com elas.
“Mesmo que a unidade educativa não possua determinados equipamentos para fins didáticos, a presença do celular, dos computadores, da internet é algo objetivo no cotidiano da maioria dos professores e professoras, alunos e alunas”, escreve Citelli.
“Isso requisita da cultura, digamos, tradicional da escola uma nova forma de relacionamento com as técnicas e estratégias para incorporá-las aos andamentos didático-pedagógicos. Tal assertiva, extraída dos dados coletados, remete a outra reflexão: não cabe pensar as tecnologias de modo instrumental, e sim como mediadoras da aprendizagem. Vistos sob tal ângulo, os recursos, ao menos alguns dos mais referidos (internet, computadores, celulares, tablets), precisam fazer parte do ecossistema comunicativo das escolas, e de algum modo − como vem acontecendo em vários casos, segundo depoimentos de docentes e discentes − colaborar no ajuste de passo entre a sala de aula e o mundo inclusivo, no qual os desafios dos dispositivos e suas linguagens estão fortemente presentes”, conclui o professor.