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O mundo nunca esteve mais conectado do que hoje em dia – com seus avanços, a tecnologia se torna cada vez mais uma parte essencial do nosso cotidiano. E essa adaptação acontece, inclusive, na esfera da educação, exigindo novas habilidades, mas possibilitando infinitas oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento. Um dos assuntos mais comentados recentemente diz respeito justamente à forma mais avançada da internet até agora: o metaverso.

Múltiplas realidades

Alexandre Sayad, diretor da ZeitGeist e Co-diretor da UNESCO MIL Alliance (aliança da UNESCO criada na Nigéria e focada na educação midiática), explica que para entender os desafios e oportunidades do metaverso, precisamos compreender antes alguns conceitos sobre a visão da realidade em si. Primeiramente, ele cita David Chalmers, filósofo e cientista cognitivo australiano, que chega a trocar o termo “realidade” pelo seu plural, “realidades” – isso porque não vivemos em apenas uma delas. 

Além disso, Sayad- também pesquisador em Inteligência Artificial e Ética – destaca outra proposta trazida por Chalmers: a de que “não existe realidade de segunda mão” – ou seja, a realidade virtual, apesar de diferente da que estamos tradicionalmente acostumados, deve ser considerada tão “real” quanto a física.

O que é o metaverso e o que pode vir a ser?

O metaverso apresenta um jeito de se relacionar com a realidade de uma forma nova. O termo “metaverso” apareceu pela primeira vez na obra de ficção Snow Crash, de Neal Stephenson, em 1992. Lá, o autor descreve um mundo onde as vidas das pessoas passaram a acontecer em um mundo virtual imersivo que substitui a internet e é povoado pelos avatares digitais dos usuários. O impacto do livro foi tão grande que continuou inspirando muitas outras criações, como os filmes da franquia Matrix. 

Apesar de Neal Stephenson ter deixado claro que não tem nada a ver com o projeto de Mark Zuckerberg, o dono do Facebook declarou sua intenção de criar uma tecnologia baseada na ideia do metaverso. Para Stephenson, o metaverso de Zuckerberg não corresponde exatamente ao que ele pensou para o livro Snow Crash – ainda assim, existe grande expectativa da população para o uso dessa ferramenta, que pretende misturar elementos do mundo físico e do mundo digital.

O metaverso, para funcionar, necessita de várias “camadas de tecnologia”. Uma extremamente importante, lembra Sayad, é o blockchain – importante para a certificação de objetos digitais. Existem ainda os wearables, acessórios como luvas e óculos que, quando adquiridos, podem ser usados para uma experiência ainda mais imersiva no metaverso. Desse modo, forma-se um universo colaborativo onde é possível interagir com outras pessoas por meio da realidade aumentada – seja em jogos digitais, redes sociais ou outros programas e sites.

“A visão mais otimista do metaverso propõe uma extensão dessa realidade”, explica Sayad, que também é colunista da Revista Educação e autor do livro “Idade Mídia: A Comunicação Reinventada na Escola”. Dessa forma, os wearables (acessórios) permitem que essa continuidade do nosso mundo para o mundo digital seja ainda mais fluida. Nossas atividades e relações também podem se transportar para esse universo, tornando-o cada vez mais “real”: “ou seja, você compra, você consome, você tem direitos, você tem desejos, você tem governança”, explica o educador.

Exemplos de aplicação do metaverso

O especialista lembra que, apesar da sensação de novidade que rodeia o assunto, já tivemos contato com algumas formas do multiverso nos últimos anos: nossa primeira experiência desse tipo foi com o Second Life, uma espécie de jogo onde os usuários podiam explorar um mundo com seus avatares. O sucesso foi tão grande que uma rede bancária privada chegou a “construir” uma agência dentro do universo digital do jogo, por exemplo.

O popular Minecraft também entra nessa categoria de jogo, conquistando fãs dedicados ao redor do mundo. Mas Fortnite, jogo que virou febre entre crianças e adolescentes nos últimos anos, é o “exemplo perfeito” do metaverso hoje, segundo Sayad: além de ser o jogo online mais popular do mundo, ele possui um relacionamento de rede social, o que é importante para o metaverso. “Não é à toa que o Facebook mudou o nome para Meta”, lembra. 

“Porque, no fundo, o metaverso vai ter um princípio de rede social”. A “vida” no Fortnite passou a ser tão complexa que dentro desse mundo virtual acontecem shows de artistas reais e até casamentos – sendo que o certificado da união dos influenciadores digitais, feito via blockchain, foi autenticado por um site de compensação digital.

Agora, vale a pergunta: considerando a existência de vários modelos dessa tecnologia e o conceito das múltiplas realidades de Chalmers, no entanto, por que eles são considerados apenas um metaverso, no singular? De acordo com Sayad, isso se deve ao desejo das grandes empresas de tecnologia de manter seu domínio sobre ele – tarefa que se torna mais fácil se o metaverso for considerado uma única entidade. “Há uma tendência de integração, há uma tendência de transposição”, pontua.

Potenciais e riscos

Falar sobre metaverso, principalmente no sentido de educação, é uma questão delicada, como diz Alexandre Sayad, e não é motivo de euforia. A falta de democratização de acesso a essas tecnologias realçam as desigualdades sociais, por exemplo, e ainda há muito que precisa avançar em uma escala mais básica no país.

“O metaverso já nasce meio distópico”, opina Sayad, que faz ainda algumas das principais discussões a serem consideradas quando falamos desse assunto:

  • Uso de dados e privacidade: Não dá para falar de metaverso sem falar de dados. “Você está vivendo no mundo digital, você está gerando bilhões de dados”, conta Sayad. E essas informações não precisam necessariamente ser números de documentos ou estatísticas: dados também são criados com cada escolha que um usuário faz, mesmo decisões pequenas.
  • Algoritmo de inteligência artificial: Essas decisões, por sua vez, são registradas e entendidas por inteligências artificiais, sem as quais o metaverso não existiria. Estamos falando de algoritmos que entendem o seu comportamento online, e portanto são capazes de modificar e personalizar sua experiência – se um usuário compra roupas no metaverso, por exemplo, é bastante possível que encontre mais lojas e anúncios desse tipo de produto. 
  • Cidadania e direitos: Propondo ser uma realidade tão “real” quanto a física, o metaverso – por ser um espaço de interações sociais – também exige discussões sobre direitos e deveres de seus usuários. Sayad, que foca especialmente nesse aspecto do assunto em sua pesquisa, lembra que existem problemas sérios em jogos devido a alguns comportamentos: já ocorreram inclusive casos de strip digital no Fortnite, por exemplo, onde não é raro crianças se depararem com situações inapropriadas. Assim como nas redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram, no Metaverso essa também é uma preocupação a ser cuidada – e faz parte da educação midiática necessária para lidar com o novo recurso.
  • Disputa econômica e política: As consequências de um mundo cada vez mais conectado incluem, é claro, posições diferentes que podem causar atritos. No ambiente do metaverso isso pode até ser potencializado, com as diferentes companhias de big tech batalhando por poder.
  • Controle Público/Privado: Como uma realidade que, apesar de digital, se torna cada vez mais real, questões do mundo físico também passam a ter efeito no digital.
  • Democratização do Acesso: se tantas escolas no Brasil ainda nem têm acesso à internet, falar de metaverso na educação é falar de um mundo “ainda mais exclusivo que o exclusivo”, diz Sayad. 
  • Entretenimento e Potencial Educativo: apesar desses problemas, o metaverso tem, é claro, possibilidades muito interessantes de cultura, inclusive agregando ao movimento de “edutainment”, que mistura educação e entretenimento. “O metaverso tem um potencial espetacular para a Literatura, para criar mundos literários imersivos para os alunos”, exemplifica. “Eu fico imaginando os mundos fantásticos da Literatura que seriam criados no Metaverso imersivo para a criança”
  • Convergência com Blockchain: utilizado para certificar objetos digitais, o blockchain permite rastrear o envio e recebimento de alguns tipos de informação na internet; informações que são, na verdade, pedaços de códigos. Eles carregam informações conectadas que são relacionadas a diferentes objetos virtuais. Desse modo, apesar de digital, um colar que um usuário compra no metaverso, por exemplo, se torna “único” e passa a pertencer àquela pessoa, pois possui seu próprio “código de série”.

O que as escolas precisam superar

Claramente, o metaverso apresenta tanto oportunidades quanto desafios para a educação. Mas, recorda Alexandre Sayad, a televisão, quando surgiu, também demorou para ser aceita e viveu por um tempo nesse tipo de “purgatório” na educação, sendo vista como distópica. O que as escolas e os educadores precisam superar, então, para passar dessa fase e utilizar bem essa tecnologia?

Primeiramente, em um mundo cada vez mais acelerado e com um volume cada vez maior de informações a todo momento, as fake news se tornaram um grande problema, e a falta de capacidade de curar informações ou diferenciar opiniões de fatos são prejudiciais ao aprendizado. Assim, a educação midiática será essencial para que o metaverso seja usado de forma positiva por estudantes e professores. O termo foi criado em 1960 nos Estados Unidos, com ajuda da Organização das Nações Unidas para a UNESCO.

Desafios de gestores educadores

Além disso, Sayad acha importante que mudemos nossa forma de olhar recursos como o metaverso. Primeiro, precisamos parar de chamar a tecnologia digital de “nova”: ela foi usada para o homem chegar na lua e Alan Turing, precursor da computação que estudava inteligência artificial, já tinha desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial uma máquina capaz de decifrar o “Enigma”, código utilizado pelos nazistas. Portanto, a inteligência artificial teve períodos mais lentos e ficou “congelada” por um tempo devido à falta de dados, mas definitivamente não é um assunto novo.

Outra mudança que precisa acontecer diz respeito à visão errônea da tecnologia como “ferramenta”. Parte da culpa vem da tradução do inglês da palavra “tool”, que deixa a desejar – mais do que uma ferramenta como um martelo, o termo transcende esse olhar e remete, na verdade, à nossa capacidade de transformar. É fundamental que gestores e educadores tenham a noção de que a tecnologia é, na verdade, uma linguagem e cultura – da qual os estudantes fazem parte. Superar o olhar instrumental sobre a tecnologia é necessário para que possamos utilizá-la da melhor maneira possível.

Em seu livro “As tecnologias da Inteligência”, o filósofo Pierre Lévy explica que passamos pela oralidade, a escrita e a informática – todas técnicas utilizadas para moldar e transmitir ideias sobre o nosso universo e as mensagens que queremos mandar. A tecnologia pode servir de protesto, pode ser política, pode contar uma história – e, claro, a mensagem soa diferente dependendo da situação, do contexto e do autor.

Segundo Pierre Lévy, então, não existe oposição entre homem e máquina – a relação entre os dois é necessária para construir a realidade. Para atingir o objetivo de aumentar a inteligência humana coletiva, precisamos continuar a desenvolver nossas mídias (assim como fizemos, por exemplo, com a invenção da escrita).

Os gestores escolares são parte chave deste processo no mundo da educação. Para Sayad, esses educadores precisam estar envolvidos e pensar em aspectos como a nossa compreensão da dimensão digital enquanto cultura, a importância do investimento em banda larga e programação nas instituições de ensino e a manutenção de uma política de dados em conformidade com LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados pessoais); precisam estar atentos à relação de controle e autonomia na dimensão digital e a elementos importantes da tecnologia como o blockchain – tudo isso pensando na agilidade e qualidade da gestão.

Como prosseguir?

É claro que a pandemia – acompanhada por novas preocupações e atrasos – trouxe mais atenção às ideias relacionadas à tecnologia e ao metaverso, conquistando a curiosidade de educadores e alunos e relembrando possibilidades alternativas que já eram consideradas há algum tempo. 

Uma certeza é que o metaverso e a tecnologia que o cerca representam, para as escolas e os educadores, perspectivas valiosas – e, ao mesmo tempo, provocações significativas que exigem reflexão de todas as partes. Conforme o mundo muda, apenas o tempo dirá até onde essa ideia, vinda diretamente de uma história de ficção científica para nosso “mundo real”, nos levará. 

Para aprofundar mais sobre esse assunto, confira o artigo:

Metaverso e educação: como antecipar tendências