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Pais de alunos com deficiência, infelizmente, ainda têm que lidar, muitas vezes, com a falta de aceitação, com o preconceito e com o capacitismo ao tentar garantir uma educação para seus filhos. Por isso, combater o capacistismo nas escolas é fundamental

Não é incomum que, em uma sociedade capacitista, alunos com deficiências e suas famílias sejam rejeitados ao tentar ingressar em uma instituição; “não estamos preparados para recebê-los”, “não temos a estrutura adequada”, “não temos mais vagas” são algumas das frases mais usadas nessas situações.

Em um mundo onde cada vez fica mais claro o quanto a educação é essencial tanto para a vida individual quanto a vida em sociedade, o capacitismo é um sério problema. 

Lau Patrón – escritora, ativista e profissional da inclusão da pessoa com deficiência e suas famílias – sente essa realidade na pele: isso porque também é mãe de João Vicente, uma criança com deficiência que sofreu um AVC com quase dois anos de idade. Ela lembra que, ao tentar encontrar uma escola para seu filho, assim que a palavra “deficiência” era dita portas se fechavam e vagas misteriosamente desapareciam. 

Para criarmos uma comunidade mais inclusiva é essencial que tenhamos consciência do problema que procuramos resolver. Começando por entender o que é capacitismo.

O que é capacitismo?

O capacitismo é o preconceito com pessoas com deficiência e a ideia de que esses indivíduos são inferiores. “Coloca as pessoas com deficiência no lugar de anormais, de fora desse padrão definido como perfeito” ensina Lau.

“Nesse contexto uma característica natural, uma condição humana, muitas vezes de nascença inclusive, é vista coletivamente como essa característica que precisa ser superada, corrigida, visto como problema, um ser humano que precisa de conserto”. 

Também é essencial saber como o capacitismo funciona na prática, quais são as atitudes que reforçam esse preconceito e que precisam, urgentemente, mudar.

Exemplos de capacitismo 

Esse preconceito possui, é claro, várias lentes e Lau cita certos exemplos como algumas delas:

  • O estereótipo da pessoa com deficiência “coitadinha” ou “incapaz, reduzindo-a a um papel sub humano, subestimando suas habilidades e  “generalizando pessoas por diagnósticos e atropelando as experiências individuais e as subjetividades”.

  • O estereótipo do “doente”, presumindo a necessidade da procura de uma cura, o que é problemático porque a deficiência nem sempre está relacionada à uma doença; por si só, é somente uma característica como qualquer outra.

  • O estereótipo do “herói” ou a narrativa de “superação”, que também é uma forma de desumanizar o indivíduo. Lau explica que essa romantização da exclusão ocorre porque a mesma sociedade que impõe obstáculos na vida de uma pessoa com deficiência e se recusa a se livrar deles é a sociedade que vai dar a ela uma medalha por passar com eles com muito esforço. A ativista afirma que esse pensamento cria uma “conformidade na ideia de que o mundo realmente não foi feito para pessoas com deficiência”, e desabafa:

    “Eu troco bem fácil as medalhas de herói de exemplo de superação que o João recebe todos os dias por uma vida digna, que não exija que ele vá até o limite do corpo dele sempre para poder simplesmente estar, por uma vida que ele não precisa gastar energia dele só dando conta de ser quem ele é nos espaços não inclusivos”.

  • O estereótipo do “anjo”, que consiste em infantilizar a pessoa com deficiência mesmo que se trate de um indivíduo adulto, retirando dela sua independência e autonomia. “Eu gosto de lembrar que a figura do anjo, essa imagem do anjo, não é uma figura humana”, avisa Lau. “Então, quando a gente tenta encaixar pessoas nesse lugar, a gente está retirando o direito delas de serem humanas”. 

O capacitismo nas escolas

Lau, que também é fundadora da Ponte – uma empresa de educação para diversidade onde age como consultora, mentora, educadora e cria tecnologias de aprendizagem social – aponta que, de acordo com o censo de 2010, 45 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência – e desses, 61,13% não chegam a conseguir finalizar o ensino fundamental – revelando características do capacitismo no Brasil.

“Vocês acham que isso fala sobre a capacidade das pessoas individualmente ou vocês acham que isso fala sobre a capacidade das escolas?”, reflete. 

Segundo a ativista, para que exista uma criação mais coletiva e inclusiva que possibilite melhores futuros para nossas crianças – é fundamental que tomemos medidas anticapacitistas. 

E a escola, por ser um dos primeiros ambientes sociais em que nos encontramos, se mostra um elemento essencial nesse plano – é lá onde, teoricamente, as crianças deveriam passar a conviver com mais diferenças, a desenvolver a empatia e expandir sua humanidade. “Infelizmente o universo das escolas particulares não se pensa nesse sentido. As conversas sobre diversidade e inclusão ainda estão banidas na maioria das escolas”, diz Lau.

A escola é um sintoma de uma sociedade capacitista

A escola, segundo Lau, é um sintoma da nossa cultura até que decida não ser: hoje em dia é possível perceber alguns indivíduos ou grupos que estão começando a expandir a escola para fora das fronteiras capacitistas, mas essa ainda é a minoria. 

“A escola é um sintoma de uma sociedade que se conforta na homogeneidade, quanto mais parecidos a gente for no grupo, mais a gente se sente bem”, complementa Lau. Essa conformidade permite que a escola, um elemento tão essencial na criação de gerações, se torne um instrumento de suporte à ideia do “normal”.

De acordo com a escritora, o que acontece nesse contexto é que “diferenças são eliminadas à força, ou na impossibilidade disso, elas geram sofrimento em uma dinâmica de educação que vai podar e punir características plurais” – isso vale tanto para os casos de pessoas com deficiência quanto de outras minorias ou pessoas que possuem outras diferenças. 

“É sobre as delicadezas que formam a subjetividade de cada criança e como a gente violenta essa delicadeza, tentando fazer caber em uma forma que é pequena demais” diz.

“A escola tem potência de construir outro mundo, mas hoje é o primeiro espaço onde se criam não lugares para muitas pessoas, uma espécie de limbo entre quem as pessoas são e quem a sociedade diz que elas deveriam ser, é o primeiro espaço onde alguém vai se sentir diminuído, rejeitado, rechaçado por ser diferente”.

Mudando o mundo a partir da escola

Em um país onde apenas 1% das carteiras de trabalho assinadas pertencem a pessoas com deficiência, precisamos pensar em quão próximos estamos da realidade do Brasil, diz Lau.

E isso começa na escola, que tem  “importantíssimas funções sociais, de contribuir com o fortalecimento na sociedade de uma cultura que saiba respeitar e valorizar a sua diversidade”; o primeiro passo deve ser olhar para seus próprios preconceitos estruturais e refletir sobre si mesma, observar se ocorrem atitudes capacitistas no ambiente escolar, criando consciência de que precisa mudar.

Obviamente essa mudança não ocorre da noite para o dia; na verdade, o processo é composto por várias “microrrevoluções”: ações do cotidiano que culminam na construção de um ambiente mais inclusivo.

Um simples momento de brincadeira pode ser mais formativo do que pensamos, ajudando na construção da visão de mundo de uma criança ao mostrar quão diverso o mundo é. Segundo Lau, o fato de não sabermos até onde vai o eco de nossas escolhas individuais é, justamente, o poder dessas escolhas. 

Como criar uma escola inclusiva

Assim, existem várias ações que podemos tomar, todo dia, para combater o capacitismo – e, desse modo, com o tempo, criar uma escola inclusiva.

Construir em conjunto com as pessoas com deficiência

Essa é uma etapa importante e a escola precisa ter a humildade de admitir que não tem todas as respostas. “Ser anticapacitista não é pensar em um mundo para as pessoas com deficiência, em uma posição de vamos salvar essa população” explica Lau.

É pensar em um novo mundo junto com as pessoas com deficiência, é construir em coletivo novas respostas e nunca parar com as perguntas, é reafirmar o direito das pessoas de contarem as suas próprias histórias, é afeto, de afetar-se, de se permitir ser tocado pela existência do outro e se permitir também tocar o outro com a nossa existência verdadeiramente”.

Dentro desse contexto, a escola deve ser um lugar seguro para todos para que consiga cumprir bem seu papel na sociedade: “não existe um mundo inovador possível sem repensar a educação, não existe educação inovadora que não passe pelo comprometimento radical com a inclusão”, diz Lau.

 

Preparação dos educadores e currículo adaptado

E professores e educadores, como personagens chave nesse sistema, precisam passar a ter, em sua formação básica, a preparação necessária para realizar seu trabalho de forma inclusiva. As atividades pensadas especificamente para certas crianças, por exemplo, mesmo sendo parte de um currículo adaptado, precisam ser conectadas ao resto da turma.

 

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Adaptar também as avaliações

Além disso, dentro desse currículo adaptado, é importante avaliar o aluno de acordo com seu próprio desenvolvimento, e não em comparação com a sala. Lau explica que a alta desistência da escola por crianças com deficiência ocorre, em parte, porque a falta de adaptação faz da escola um ambiente tóxico, onde esses alunos não conseguem performar – o que é desmotivante. “Temos gente desistindo porque não está conseguindo, desistindo porque está se sentindo muito violentado no processo”, conta.

Uma das principais coisas a se lembrar é que segregar é o contrário da resposta para o problema do capacitismo nas escolas. Não apenas aceitar, mas celebrar a diversidade é o que torna uma comunidade forte, e isso vale dentro do ambiente das instituições de ensino também.

Além disso, a inclusão não é um favor, mas um direito – e é por esse direito, opina Lau, que devemos aposentar o conceito de “normalidade” – essa “régua pequena demais para medir aquilo que é humano”.

 

Assista a palestra completa:

Qual a responsabilidade da escola na construção de futuros anticapacitistas?